Os mais de três séculos de colonização portuguesa no Brasil não deixaram apenas marcas no território. Em folhas amareladas e corroídas pelo tempo ainda sobrevivem os rastros das primeiras décadas de formação da sociedade brasileira — a que conhecemos hoje, resultado do extermínio, escravização e perda de terras e culturas dos povos originários que primeiro habitaram a “terra à vista”.
É esse retrato que emerge do Livro nº 24 do 1º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, com registros produzidos entre 11 de março de 1594 e 12 de junho de 1595 e agora restaurado e digitalizado pelo Arquivo Nacional.
Com 122 páginas, o documento mais antigo guardado pela instituição reúne concessões de sesmarias assinadas pelo capitão-mor Salvador Corrêa de Sá, governador da capitania do Rio de Janeiro. São contratos de compra e venda de imóveis, acordos de casamentos e dotes, arrendamentos, registros de alforria e transações de compra e venda de pessoas escravizadas.
As escrituras revelam aspectos centrais da vida cotidiana e a organização social no período colonial, quando a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro ainda se firmava como um núcleo estratégico da Coroa portuguesa.
O material é uma fonte primária única para compreender as estruturas jurídicas, econômicas e sociais do país miscigenado nascente.
Embrião da estrutura fundiária brasileira, as sesmarias documentam a política de doação de terras condicionadas ao cultivo, mas na prática marcadas por desigualdades e privilégios.
O sistema tem raízes em Portugal, onde surgiu em 1375, durante o reinado de Dom Fernando, como resposta a uma grave crise de abastecimento.
A medida estabelecia que os proprietários eram obrigados a cultivar ou arrendar suas terras sob pena de perdê-las — prática incorporada ao Brasil com a colonização.
A partir da criação das capitanias hereditárias, em 1534, os donatários passaram a ter a obrigação de repartir e conceder sesmarias a colonos. Com a instalação do governo-geral, a atribuição de conceder terras passou aos governadores.
No Rio de Janeiro, cabia a Salvador Corrêa de Sá a atribuição de conceder glebas em nome do rei.
O objetivo declarado era povoar e cultivar, porém abriu caminho para vastas áreas improdutivas e a perpetuação da concentração de grandes extensões de terra nas mãos de poucos.
Conforme explica o historiador Thiago Roque, o sistema de terras no Brasil colônia era altamente centralizado nas mãos do governador, cuja decisão pessoal endossava as petições.
“Essa concessão não era um processo burocrático (apesar da existência de uma estrutura burocrática) distante das possibilidades de quem o buscava, mas uma decisão pessoal do governador”, analisa Roque.
A forma detalhada dos registros, de acordo com o professor, evidencia a existência dessa estrutura burocrática organizada já no final do século XVI, com figuras como o Escrivão das Sesmarias e a própria Câmara das Notas, algo que demonstra a preocupação da Coroa em “documentar e legalizar a apropriação do território brasileiro”.
As cartas de sesmaria impunham a condição de que as terras deveriam ser aproveitadas dentro de um prazo, geralmente de três anos.
Se o donatário não cumprisse a regra, a terra era considerada “devoluta”, ou seja, retornava para a Coroa para ser concedida a outra pessoa.
O conceito de “terras devolutas” (terras públicas sem destinação) existe até hoje no ordenamento jurídico brasileiro e é central nos debates sobre reforma agrária, demarcação de terras indígenas e quilombolas e regularização fundiária.
Muitas das disputas por glebas no Brasil contemporâneo giram em torno da definição e do destino dessas propriedades, um eco direto das condições impostas nestes documentos de mais de 400 anos.
Na avaliação do historiador Thiago Roque, “a continuidade histórica desse conceito revela que a estrutura jurídica, propulsora de conflitos e lutas pela posse da terra no Brasil ainda hoje não se resolveram”.
“Pelo contrário, se transformaram em um triste retrato da nossa sociedade, que não consegue compreender que a falta de acesso à posse da terra ainda será um norteador das desigualdades. O que demonstra, inclusive, uma necessidade urgente de reforma agrária.”
Outro ponto que ajuda a entender o uso da terra no sistema de sesmarias registrado pelo Livro Nº 24 é a tributação, já que a exploração da região estava atrelada a obrigações fiscais.
Os sesmeiros (donatários) eram obrigados a pagar o dízimo “à ordem de mestrado de nosso senhor Jesus Cristo”, um imposto correspondente à décima parte da produção que financiava a Coroa e a Igreja.
Os donatários também eram incentivados a realizar benfeitorias como construir casas, lavouras e caminhos, além de explorar as madeiras e águas disponíveis, o que contribuiu para a formação da paisagem colonial.
Em termos de sociedade e povoamento, as sesmarias eram concedidas a “moradores” do Rio de Janeiro (pessoas de diversas origens, incluindo portugueses e outros europeus que habitavam a cidade) com o intuito de fixá-los na terra e promover o crescimento populacional.
Alguns nomes se repetem no livro, o que indica que receberam mais de uma sesmaria. Um deles é Gaspar de Magalhães, que aparece em pelo menos três concessões diferentes, uma delas em conjunto com Antônio Fernandes. Em outras, recebe terras com Zacarias Truillos e André de Sontes.
Zacarias Truillos, por sua vez, também é mencionado recebendo terras com Silvestre Fernandes. Já André de Sontes recebe uma sesmaria em conjunto com F.o da Fonseca, identificado como oleiro (artesão que molda e fabrica objetos de cerâmica).
Aparecem repetidamente, ainda, os nomes de Jorge Roiz e Diogo Luis, além da concessão de sesmarias para instituições como a que foi feita aos “padres do mosteiro de Nossa Sra. do Carmo”.
As concessões em conjunto sugerem a existência de parcerias comerciais, sociedades ou laços familiares entre os sesmeiros da época.
Os documentos descrevem, ainda, a localização das terras concedidas, mencionando rios, enseadas, ilhas e os limites com as propriedades vizinhas, o que demonstra um processo contínuo de expansão territorial e demarcação de propriedades ao redor daquele núcleo urbano.
A Várzea (grafada como “Vargea” ou “Varge” nos documentos) do Rio de Janeiro é a região mais concedida e repartida entre os donatários do período. Ela corresponde ao que hoje é o Centro da capital fluminense.
As cartas frequentemente mencionam que a posse da terra se estendia aos “herdeiros e sucessores” do donatário, reforçando o caráter familiar e hereditário do povoamento.
A presença feminina não é predominante nos registros, mas se revela de maneiras significativas. O exemplo mais notável é o de Biatriz Pinta, cuja sesmaria é concedida porque ela mesma apresentou uma petição ao governador.
Biatriz Pinta justifica seu pedido pelo fato de que “não tem chãos” (não possui terras) e “tem duas filhas”, sem a menção de uma figura masculina (marido ou pai). A ela foi outorgada uma propriedade no “caminho das Olarias”, localizada “nas quadreiras dos chãos de Dioguo Alvores”.
Nas outras menções, as mulheres aparecem como parte da estrutura familiar do sesmeiro, um elemento na justificativa para a concessão da terra.
João Gomes Sardinha, por exemplo, afirma em sua petição que é “casado com molher e filhos”. Fernão Gil e Elionel de Magalhais solicitam terras para se “agazalhar com sua molher e filhos”.
Mas os pilares da hierarquia administrativa durante a colonização não são o único detalhe que chama a atenção do professor Thiago Roque.
Para ele, a leitura das anotações atesta “que a escravidão era um investimento e a coluna dorsal da economia colonial”.
Isso porque os textos mencionam a exploração em um contexto que expõe sua normalização e função econômica na época.
“A inclusão de escravizados como propriedade nos inventários, juntamente de terras e imóveis, de certa maneira legitimava uma hierarquia social violenta, baseada na posse e no controle de vidas. Ser proprietário de terras e de escravizados definia o pertencimento à elite colonial e os interesses da Coroa portuguesa.”
A evidência mais concreta aparece na carta de sesmaria concedida a Martim de Sá em uma localidade chamada Elgiga.
Ao descrever o histórico de ocupação daquelas terras, o documento relata que uma antiga posseira, Joana Mendez, havia tido no local um homem chamado Madan com “seus nove escravos”.
A função desses indivíduos escravizados é descrita: eles estiveram no local por “dous ou tres annos fazendo roças”, ou seja, realizando o trabalho pesado de desmatamento e preparação da terra para o cultivo.
O que esses registros não dizem é igualmente revelador, já que em nenhum dos documentos há qualquer menção a trabalhadores assalariados, arrendatários ou qualquer outra forma de mão de obra contratada para realizar o trabalho de cultivar vastas várzeas, construir casas, engenhos ou olarias.
O valor histórico do Livro Nº 24 só pôde ser preservado após um delicado processo técnico. O volume de mais de quatro séculos de existência esteve ameaçado pela deterioração, mas passou por um minucioso trabalho artesanal de restauração realizado pela equipe do Arquivo Nacional.
A restauração assegura a integridade do documento para as próximas gerações, enquanto a digitalização ampliou seu acesso. Disponível on-line no Sistema de Informações do Arquivo Nacional (Sian), antes a consulta era restrita devido ao estado frágil do material.
Os danos incluíam tintas metaloácidas corroídas, ataques de insetos, fungos, rasgos e uma encadernação danificada.
Os procedimentos de tratamento técnico envolveram a desencadernação, a remoção cuidadosa do encapsulamento de papel japonês Mino, banhos químicos para descolar o material e a reenfibragem mecânica das folhas para reintegrar as áreas perdidas.
O Arquivo Nacional compartilhou com O POVO+ um dossiê completo com detalhes do processo de restauração do documento.
O conservador-restaurador Anivaldo dos Santos Gonçalves foi o responsável por realizar exames minuciosos no documento e constatou que ele é composto por 122 folhas de papel de trapo de boa qualidade, escritas na frente e no verso, com dois tipos diferentes de tinta.
As folhas foram, em algum momento, encapsuladas com papel Mino e cola proteica.
O papel Mino, com o passar do tempo, envelheceu e ficou amarelado. Além disso, fungos se desenvolveram no encapsulamento devido ao microclima ali formado.
A técnica de encapsulamento era frequentemente empregada no século XIX em documentos que se encontravam com rendilhamentos por broca (inseto que danifica materiais como tecidos, forros e livros, fragmentando-os).
Foi necessário uso de estilete na abertura das páginas e da Máquina Obturadora de Papel (MOP) no processo de restauração do documento mais antigo do Arquivo Nacional. O equipamento é capaz de reestruturar folhas de papel rasgadas ou furadas em poucos segundos.
A importância dessa recuperação de documentos históricos, na opinião do historiador Thiago Roque, se faz na “possibilidade de colocar em debate problemáticas sobre a construção do Brasil, que literalmente deixou de lado os povos originários e indígenas do direito à posse de terras”.
“Além do mais, o processo de restauração e digitalização de documentos antigos nos dias de hoje, apesar de serem complexos e demorados devido aos cuidados técnicos e metodológicos, assegura aos historiadores, sociólogos e pesquisadores em geral, uma acessível fonte de pesquisa confiável”, continua o professor.
Para Roque, isso “permite ao público e toda a comunidade acadêmica o acesso à informação, enquanto o original pode ser preservado de forma segura e protetiva”.
“Ao disponibilizar digitalmente um documento que está sob posse e proteção do Arquivo Nacional, o Estado, por meio de suas instituições de fomento à história e cultura, nos demonstra transparência sobre as bases históricas e de sua própria jurisdição.”
E finaliza: “Isso significa permitir que a sociedade compreenda questões complexas da nossa formação, a exemplo da questão fundiária brasileira como um problema estrutural que remonta aos atos iniciais da Coroa portuguesa aqui no Brasil”.
"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Se preferir, me escreva um e-mail (karyne.lane@opovo.com.br), ficarei feliz de te ler. Até mais!"