O Farol do Mucuripe é um dos pontos mais emblemáticos do Ceará. Dos 299 anos de Fortaleza, o Farol esteve aqui por 179 deles.
Reinaugurado em outubro de 2025, depois de quase vinte anos sem receber um uso oficial, o equipamento se afirma como mais do que uma estrutura física.
Ele é um lugar de memória e um ponto de partida para a história. A área onde ele se situa, a Ponta do Mucuripe, já era conhecida por navegantes bem antes do século XIX.
Os primeiros mapas do litoral cearense, feitos por viajantes europeus, já registravam a enseada sob diferentes nomes: Macorie, Macaripe e até Mockeroe.
De lá para cá, o grande Mucuripe já cresceu, já decaiu, renasceu e resistiu às intempéries do tempo, da maresia, da violência e da especulação imobiliária.
Tudo sob as luzes vigilantes de um monumento que, apesar de ancorado no passado, ajuda a apontar na direção do futuro.
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Desde suas origens, a cidade de Fortaleza foi defendida por modestas fortificações erigidas na enseada de Mucuripe.
Essa região costeira era um local de escambo primitivo, onde holandeses e franceses trocavam madeira, em especial tatajuba, por itens manufaturados nas metrópoles.
Apesar disso, até o início do século XIX, a então vila de Fortaleza era inexpressiva, não tendo sido beneficiada pelos ciclos econômicos da cana-de-açúcar ou da mineração que enriqueceram outras capitais nordestinas.
No entanto, o crescente tráfego marítimo, que impulsionava a exportação do algodão, exigiu um ponto de orientação.
A necessidade de um farol para auxiliar a navegação e garantir a segurança na aproximação e acesso ao precário porto de Fortaleza se tornou evidente.
Conhecer a história do farol, portanto, é acompanhar o contexto do Brasil Imperial no século XIX e entender como Fortaleza começou a enriquecer e a se tornar uma grande cidade.
A edificação original, que viria a se tornar o Farol Velho, teve sua ordem de construção autorizada por D. Pedro I em 1826. Três anos mais tarde, o presidente da província do Ceará daria prosseguimento ao ato.
Contudo, a obra só foi iniciada em 1º de maio de 1840 e inaugurada em 21 de fevereiro de 1846.
Idealizado pelo engenheiro militar Conrado Jacob de Niemeyer, o edifício original, tombado pelo Governo do Estado desde 1983, é um dos únicos exemplares do estilo barroco na capital cearense.
A descrição da Lista de Faróis de 1911, feita pela Marinha, dá conta da estrutura única do farol: uma "torre cilíndrica de ferro fundido sobre base octogonal de alvenaria".
Fotografias da época revelam que a torre de ferro fundido foi montada dentro da construção octogonal de alvenaria.
Esta base octogonal circundava a torre de ferro para servir de residência e alojamento para os faroleiros e outros serviços.
O farol exibia uma luz branca com lampejos intermitentes, utilizando um aparelho
A importância do Farol do Mucuripe como balizador da navegação foi inegável por mais de um século, sendo fundamental para o desenvolvimento econômico do Ceará.
No entanto, com o crescimento acelerado e desordenado de Fortaleza a partir dos anos 1950, o farol de 1846 enfrentou a obsolescência.
A Capital experimentou um crescimento urbano intenso, com a construção de edificações cada vez mais altas na orla do Mucuripe.
Essas novas estruturas começaram a prejudicar a visibilidade do farol, comprometendo a segurança da navegação de aproximação e acesso ao porto. Já em 1952, cogitou-se a transferência do farol para um local mais proeminente.
Em 13 de dezembro de 1958, um novo farol de concreto armado, com 22 metros de altura e alcance de 28 milhas (aprox. 45 km) , foi inaugurado em um terreno mais alto, a quase 3 km de distância do farol original.
Este "Farol Novo" foi instalado no alto de um monte de areia, por trás de depósitos de uma companhia de gasolina, na Praia de Antônio Diogo.
O farol original foi, então, desativado. A necessidade da mudança foi impulsionada pela indústria e pela pressão do setor imobiliário.
Empresários do setor de moagem de trigo, por exemplo, pressionavam por uma solução que permitisse a elevação vertical das edificações, incluindo silos, e o crescimento urbanístico vertical da cidade, que estava limitado pela altura do farol de 1958.
A história se repetiu: em 2017, um terceiro farol, conhecido como "novíssimo", foi inaugurado nas proximidades, com 72 metros de altura.
Segundo a Marinha, trata-se do maior farol do continente americano e o sexto maior do planeta. Os recursos destinados a essa nova e colossal estrutura contrastam drasticamente com o descaso de mais de 40 anos dispensado ao farol histórico de modestos nove metros.
Após a desativação em 1958 e a desocupação pela Marinha em 1959, o Farol Velho perdeu sua função técnica. Foi doado à Prefeitura de Fortaleza em 25 de junho de 1971 e batizado como Museu do Jangadeiro.
Contudo, a área do entorno, parte da comunidade do Serviluz e do Cais do Porto, construiu uma memória social particular durante o período de abandono e pós-desativação.
O entorno do farol era conhecido como a “zona do Farol” e fazia parte do baixo meretrício da cidade, especialmente entre os anos 1960 e 1980.
As mulheres que exerceram a prostituição nesse período se autodenominam as "fundadoras do Farol". Elas narram esse período como o "tempo bom do Farol", uma época de prosperidade e sociabilidade festiva, muitas vezes atendendo a estrangeiros e personalidades endinheiradas de Fortaleza.
A Zona do Farol nas páginas do O POVO
O assunto aparece pela primeira vez na capa do dia 23 de junho de 1955. Em destaque, no centro da página, é anunciado o "Projeto". Em seu primeiro registro n'O POVO, a exploração sexual infantil é diretamente associada à ideia de "salvamento", sugerindo que cabia à sociedade esse dever
O texto aborda o problema dos “menores abandonados”, associando a miséria e a degradação familiar aos problemas de “delinquência e prostituição”
O texto fala do Farol como um refúgio e ponto de encontro para prostitutas que, com o fechamento das "pensões alegres" no Centro e outros bairros de Fortaleza, se mudaram para lá, numa conexão forçadamente poética
A reportagem passeia pela noite fortalezense e denuncia a presença de meninas na porta de boates de diversos níveis, do Centro ao Mucuripe, durante a madrugada
Essas mulheres se orgulhavam de sua distinção, especialmente em contraste com as prostitutas do "Curral" (atual Moura Brasil), tidas como "promíscuas" e "desordeiras". A memória romantizada, porém, oculta a face cruel da exploração sexual de crianças e adolescentes que também ocorria no local.
A abertura do Museu do Jangadeiro, que contava a história do Cais do Porto e da Praia Mansa, fez com que o Farol se tornasse um importante ponto de visitação turística, apesar do preconceito que a comunidade do Serviluz sofria.
Com o fechamento do equipamento em 2007, a região enfrentou um processo de deterioração e o equipamento passou quase duas décadas sem receber a devida atenção do poder público.
Apesar de sua relevância histórica e do tombamento estadual de 1983, o Farol do Mucuripe sofreu com décadas de falta de cuidado do Poder Público.
Em geral, isso se manifestava em escadas enferrujadas, pichações, objetos extraviados e paredes quebradas.
O estado de um dos ícones do Ceará era, sob muitos aspectos, uma materialização de um dilema intrínseco à Fortaleza: uma cidade que cresceu desordenadamente e com uma elite, em geral, indiferente à sua própria memória urbana.
Não fosse o esforço da comunidade, organizada em associações e coletivos, talvez o Farol tivesse ruído. É o que relatam os representantes da Associação Comissão Titan e das Zeis Cais do Porto e Serviluz.
Um dos primeiros movimentos coletivos para chamar a atenção para a situação do Farol foram as ações artísticas do Festival Concreto, em 2013, destaca Katia Lima, moradora da comunidade e membro da Associação Comissão Titan.
“Depois disso a comunidade fez vários eventos, saraus… Além das ações de limpeza do farol e da praia. Ao longo dos anos fizemos outras intervenções, pinturas com os artistas locais, tudo como um grito de socorro para o poder público ver qual era o estado do equipamento e da comunidade”, relata.
Entre julho e agosto de 2025, moradores e lideranças comunitárias do Titanzinho realizam três dias de celebração com o evento “Ocupa Farol Titanzinho: por uma gestão compartilhada”. A iniciativa contou com exposição de fotos, apresentações musicais e exibição de filmes.
Kátia Lima afirmou que o principal objetivo é garantir que o farol tenha um papel ativo na valorização da cultura e da economia criativa local.
“Nós não queremos ser funcionários do Estado, de forma alguma. Isso é papel deles. O que queremos é mostrar o nosso trabalho de cultura e turismo. Aqui temos vários artistas, além da pesca e do artesanato, as principais fontes de renda dos moradores”, afirma.
Ela destaca que o espaço deve refletir a identidade do território: “Temos artistas, pescadores, artesãos, gente que canta, que dança, grafiteiros e muito mais. Nosso desejo é que o Farol seja um centro cultural vivo, não somente um espaço para visitação”.
André Aguiar, integrante da Associação de Moradores do Titanzinho e professor do IFCE, reforça que o farol é um símbolo importante não só para o Ceará, mas principalmente para a comunidade.
“Ele é um ícone da nossa história. O farol nunca esteve abandonado por nós. Sempre foi cuidado, ocupado e usado para programações culturais pelos moradores, mesmo com o descaso do poder público”, destaca.
Segundo ele, a proposta de gestão compartilhada visa reconhecer essa presença histórica. “Queremos que o estado formalize um mecanismo de participação efetiva da comunidade, por meio de um comitê gestor que inclua tanto representantes do governo quanto das organizações locais”.
Para muitos, o farol representa não só um patrimônio histórico, mas também um espaço de afetos e lembranças de infância.
As crianças do Titanzinho sempre estiveram presentes ali, mesmo antes da nova brinquedopraça. Com brincadeiras de castelo e pirata nas escadarias do farol, a maioria cresceu ali, correndo e brincando.
Na infância, o pai de Jamile Sousa, pescador, a levava todas as tardes para brincar no Farol. "Ele já não está mais conosco, mas essa memória ficou viva. Me emociono muito toda vez que falo disso”, compartilha com os olhos marejados.
“Para nós o mais simbólico não foi ver como o Farol ficou bonito, foi a gente ter conseguido manter as 85 famílias que iriam ser despejadas aqui do entorno”, declarou Jander Glinde, que também é da Associação Comissão Titan.
Revogado pelo governador Elmano de Freitas em 2024, o decreto Estadual n.º 34.451, de 09 de dezembro de 2021, determinava que área do entorno do farol era de utilidade pública e previa uma desapropriação dos terrenos das famílias.
Mais de uma dezena de entidades civis se uniram para pressionar o governo do Estado pela revogação.
Questionados se temiam os avanços da especulação imobiliária e de um possível processo de gentrificação, o grupo de moradores disse que com a regulamentação das Zonas Especiais de Interesse Social, aprovada em 1º de outubro de 2025, é possível respirar com mais tranquilidade, mas sem sair do estado de alerta e sem abandonar a luta por uma cidade mais justa.
"Estamos cuidando para que aqui não aconteça o mesmo que na Beira-Mar, que era um espaço de vida comunitária, de povos do mar, pescadores e marisqueiros. Queremos melhorias, sim. Mas não aceitamos progreso que remova as pessoas e destrua suas vidas".
Por isso, o principal instrumento de luta que a comunidade reivindica depois da restauração e da reinauguração do Farol, é a aprovação de um Plano de Gestão Compartilhada do Farol.
Além de trazer a população para agir e discutir as necessidades locais, o modelo daria plenos poderes de decisão a uma comissão que dividiria a administração com a Secretaria da Cultura do Ceará.
Como mariposas hipnotizadas pela luz, as comunidades da Estiva, do Titanzinho e do Serviluz garantem que não sairão de perto do facho e da beira da praia.
Com o brilho de quem se ancora na tradição, mas não tira os olhos da esperança de pisar tranquilo em terra firme, a gente aguerrida que nasceu sentindo o cheiro da maresia jamais deixará a memória ser corroída.
"Para construir esta reportagem, OPOVO+ se apoiou nas seguintes Referências Bibliográficas"