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O medo do outro: a redefinição das leis de imigração no mundo
Reportagem Especial

O medo do outro: a redefinição das leis de imigração no mundo

No século XXI, a política migratória se tornou um termômetro moral das nações. Países que historicamente se ergueram sobre o trabalho e a diversidade de imigrantes endurecem suas leis, criminalizam travessias e levantam discursos nacionalistas

O medo do outro: a redefinição das leis de imigração no mundo

No século XXI, a política migratória se tornou um termômetro moral das nações. Países que historicamente se ergueram sobre o trabalho e a diversidade de imigrantes endurecem suas leis, criminalizam travessias e levantam discursos nacionalistas
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A cineasta brasileira Barbara Marques entrou esperançosa no escritório de Imigração dos EUA, em Los Angeles, para a primeira entrevista de seu pedido de residência permanente após o casamento com um americano, mas não retornou.

Em meio ao processo burocrático, já avançado, ela foi detida por agentes do Serviço de Imigração e Alfândega (ICE), algemada nas mãos e nos pés, em uma experiência que, segundo seu marido, Tucker May, foi marcada pela extrema falta de humanidade.

Barbara Marques é brasileira, cineasta e vive nos EUA desde 2018. Ela é uma mulher negra de cabelo crespo escuro e na imagem sorri enquanto segura um troféu(Foto: Reprodução/ Instagram @barbaramarianamarques)
Foto: Reprodução/ Instagram @barbaramarianamarques Barbara Marques é brasileira, cineasta e vive nos EUA desde 2018. Ela é uma mulher negra de cabelo crespo escuro e na imagem sorri enquanto segura um troféu

A alegação para a detenção era sua ausência em uma audiência de visto em 2019, que gerou uma ordem de deportação, apesar de a brasileira não ter antecedentes criminais.

Marcelo Gondim, advogado do caso, conta que o procedimento padrão teria sido interromper o pedido do green card e dar um prazo de 30 dias para resolver a questão pendente.

No entanto, o caminho que Barbara e seu advogado acreditavam levar à estabilidade e à legalidade se converteu em um episódio marcado pelo trauma e pela violência burocrática.

Casos semelhantes estão ganhando visibilidade após a política rígida de imigração do presidente americano, Donald Trump. Imigrantes que tentam se regularizar nos EUA, correm o risco de, apesar das formalidades para emissão da residência permanente, serem detidos e deportados.

Os casos emblemáticos ilustram a dura realidade de uma tendência global: o endurecimento implacável e a securitização das políticas migratórias, impulsionados por ideologias conservadoras e pela convergência perigosa entre a lei penal e a lei de imigração.

  

 

Como a migração passou de solução a problema global?

Tão antiga quanto sua etimologia é a própria ação de deixar o lugar de origem e adentrar outro território. Migrar é, em essência, um movimento humano ancestral — um gesto que atravessa eras, impérios e fronteiras.

Com a globalização e o avanço tecnológico, a circulação de pessoas pelo mundo foi facilitada e os deslocamentos se intensificaram. Os fluxos migratórios ganharam novos significados e, em muitos casos, foram estimulados.

Theresa Rachel Couto Correia, doutora em direto internacional e integração econômica, é uma mulher branca, de cabelo liso, médio e escuro. Na imagem, ela usa uma blusa creme e olha diretamente para a câmera(Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal Theresa Rachel Couto Correia, doutora em direto internacional e integração econômica, é uma mulher branca, de cabelo liso, médio e escuro. Na imagem, ela usa uma blusa creme e olha diretamente para a câmera

É o que explica a professora da faculdade de direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), doutora em direto internacional e integração econômica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Theresa Rachel Couto Correia.

Segundo ela, a necessidade de mão de obra na Europa e nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial provocou um intenso fluxo migratório para essas regiões.

A política voltada à oferta de mão de obra ampliou significativamente a legislação migratória entre o final da década de 1970 e o início dos anos 2000.

O crescimento econômico vivido nesse período criou uma grande demanda por trabalhadores, especialmente aqueles com baixa qualificação, em setores de serviços.

Havia necessidade de garçons, pedreiros, pintores, eletricistas, encanadores, enfermeiras, profissionais da limpeza doméstica e outros.

“Durante cerca de três décadas, essa conjuntura tornou conveniente para esses Estados adotar uma postura mais aberta — e, em muitos casos, até fechar os olhos para a imigração ilegal”, explica.

Uma coletânea de artigos publicada em 2016 pela editora acadêmica internacional Brill estima que 20 a 30 milhões de pessoas sejam migrantes não autorizados globalmente, sendo que 14 milhões residem nos Estados Unidos.

A American Hellenic Educational Progressive Association, organização fraterna fundada com foco nos direitos civis, atribui a força, o desenvolvimento e a grandeza dos Estados Unidos a cerca de 40 milhões de imigrantes de todas as nações.

O tema virou, inclusive, música pop. Na canção NUEVAYoL, do cantor porto-riquenho Bad Bunny, o artista tece críticas ao enrijecimento das políticas de migração e atribui toda a evolução e desenvolvimento acelerado do país norte-americano ao sangue e ao suor provenientes da exploração das populações imigrantes.

Theresa Rachel explica que , com o tempo, o número expressivo de imigrantes em circulação revelou um descompasso entre oferta de trabalho e capacidade de absorção dos mercados.

Em nações desenvolvidas, o fluxo migratório passou a ser visto por parte da população como uma espécie de “invasão”, alimentando discursos de medo e insegurança.

Paralelamente, as transformações tecnológicas, com a automação de processos e a informatização de serviços, reduziram a demanda por mão de obra em setores tradicionalmente ocupados por imigrantes.

 

Acompanhe os números sobre migrantes não autorizados 

 

A combinação entre crise econômica e avanço tecnológico agravou o desemprego estrutural e, com ele, a vulnerabilidade das populações migrantes. Sem emprego e, muitas vezes, sem acesso a direitos básicos, essas pessoas acabam empurradas para a margem da sociedade, compondo um cenário de crise social.

Do ponto de vista dos Estados, a migração descontrolada — sobretudo aquela sem documentação — é frequentemente associada a prejuízos econômicos e sociais. Governos alegam que a chegada de migrantes em situação irregular sobrecarrega serviços públicos, como saúde, assistência social e habitação.

Além disso, o aumento da pobreza urbana e o crescimento de situações de vulnerabilidade — como pessoas em situação de rua, casos de dependência química e abandono de menores — são apontados como efeitos colaterais desse processo.

Imigrantes protestam contra políticas migratórias de Donald Trump em 2017(Foto: Michael Reynolds/EPA/Agência Lusa)
Foto: Michael Reynolds/EPA/Agência Lusa Imigrantes protestam contra políticas migratórias de Donald Trump em 2017

Em meio a esse contexto, os migrantes indocumentados acabam presos em uma teia de ilegalidade: sem documentos, não conseguem empregos formais; sem trabalho, não têm condições de regularizar sua situação.

Submetidos a atividades clandestinas e perigosas, permanecem à margem da proteção estatal — e, muitas vezes, sem sequer o direito de adoecer, já que o simples acesso a um hospital pode representar o risco de denúncia e deportação.

 

 

O medo do outro: a era da ‘globalização do terror’ influencia as políticas de imigração?

A doutora em direito internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, conselheira da Sociedade Brasileira de Direito Internacional e presidente da Comissão de Relações Internacionais da OAB-MG, Amina Welten Guerra, analisa que os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, em Nova York, inauguraram uma era na segurança e na defesa internacional, mas não explicam, em sua completude, o endurecimento das políticas migratórias.

Amina Welten Guerra, doutora em direito internacional, é uma mulher branca de cabelo liso escuro. Na imagem ela usa um conjunto de terno azul(Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal Amina Welten Guerra, doutora em direito internacional, é uma mulher branca de cabelo liso escuro. Na imagem ela usa um conjunto de terno azul

Conforme a especialista, outros fatores estão mais diretamente ligados à formulação das novas leis, entre eles a busca por proteger os interesses nacionais.

O terrorismo pode ter contribuído para o fortalecimento das medidas de segurança e defesa, mas o rigor das medidas é resultado de uma pluralidade de elementos que convergem para práticas nacionalistas e restritivas.

Na lógica nacionalista, o imigrante é construído como um elemento de risco, e essa representação se combina a discursos racistas, xenófobos e protecionistas, que associam equivocadamente o estrangeiro ao terrorismo, à criminalidade e à clandestinidade.

Conceitos como o parasitismo social — a crença de que imigrantes ‘sobrecarregam’ o welfare state "Estado de bem-estar social, um modelo de organização estatal onde o governo assume um papel ativo em garantir o bem-estar da população através de políticas públicas nas áreas de saúde, educação, seguridade social e assistência social, financiadas por impostos para assegurar um padrão mínimo de vida e reduzir as desigualdades sociais. (Fonte: IA do Google)
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 e a mixofobia — o medo de conviver com o ‘outro’, com o diferente — alimentam a intolerância e o medo do diferente.

Essa tendência tem provocado uma mudança de paradigma jurídico, em que infrações migratórias, de natureza tipicamente administrativa, passam a ser tratadas como infrações criminais, resultando em detenção e deportação como sanções frequentemente sobrepostas.

Os efeitos práticos dessas visões são visíveis nas políticas de controle e deportação. Conforme dados do ICE, até outubro, mais de 493 mil sanções migratórias foram realizadas, com mais de 457 mil detenções efetuadas. 

Além das remoções forçadas, o Departamento de Segurança Interna dos EUA (DHS) confirmou a saída voluntária de 1,6 milhão de imigrantes desde janeiro de 2025, totalizando mais de 2 milhões de saídas.

O governo Trump chegou a estabelecer a meta de prender 3 mil imigrantes por dia. O jornal americano The Washington Post noticiou, em agosto de 2025, um número recorde de detidos (61 mil), com relatos de superlotação e condições precárias nos centros de detenção. 

Frontex é a Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira, uma agência da União Europeia que apoia os países-membros na gestão das fronteiras externas da UE e no combate à criminalidade transfronteiriça(Foto: Reprodução/ Frontex)
Foto: Reprodução/ Frontex Frontex é a Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira, uma agência da União Europeia que apoia os países-membros na gestão das fronteiras externas da UE e no combate à criminalidade transfronteiriça

Na Europa, a criação do Frontex — Agência Europeia para a Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas — em 2004, reforçou a tendência de militarização das fronteiras.

No campo jurídico, esse tratamento repressivo aproxima-se do chamado Direito Penal do Inimigo, que pune o indivíduo não pelo que fez, mas pelo que representa. Essa lógica, que separa ‘cidadãos’ e ‘inimigos’, viola o princípio da isonomia e é incompatível com o Estado Democrático de Direito.

 

 

Todo refugiado é um imigrante, mas nem todo imigrante é um refugiado

A política de intolerância tem assumido um custo humano devastador. O rigor das medidas anti-imigrantes afeta também os refugiados, violando acordos internacionais que garantem proteção a quem foge de perseguições e conflitos.

A professora Theresa Rachel Couto, especialista em Direito Internacional, explica que migrar em busca de melhores condições de vida é um direito humano reconhecido desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).

 

 

No entanto, o endurecimento das políticas migratórias entra em choque com diversos tratados internacionais de proteção. “Os países estão rasgando os pactos de direitos humanos que levamos tanto tempo para construir”, afirma.

Ao abandonarem políticas migratórias mais equilibradas, os países deixam de priorizar a dignidade humana e presenciam cenas de deportações em massa, apreensões e refugiados sem recolhimento viram num terrível rotina.

Em 2015, a União Europeia enfrentou um de seus maiores desafios com a crise de refugiados sírios. Em vez de priorizar a proteção, a resposta foi marcada pela securitização e pela externalização do controle das fronteiras.

O exemplo mais emblemático é a Declaração Conjunta UE-Turquia (2016), que delegou à Turquia a tarefa de impedir as travessias para a Grécia em troca de bilhões de euros em ajuda financeira.



Outras medidas restritivas, como a Diretiva de Retorno (2008/115/CE), institucionalizaram a expulsão forçada, permitindo detenções de até seis meses e a proibição de reentrada por até cinco anos.

Em meio a um cenário global de fronteiras cada vez mais militarizadas, o refugiado se torna o retrato mais vulnerável das políticas de exclusão. O que deveria ser um direito — o de buscar refúgio e reconstruir a vida — transforma-se em um obstáculo quase intransponível.

 

 

Ponto de vista

Hierarquia da violência

Por Ariadne Araújo*

O anúncio de pacotes anti-imigração — incluindo a criação da polícia especial para estrangeiros, restrição a reagrupamento familiar, a limitação para vistos de trabalho — deixa-nos com os nervos a flor da pele, em Portugal. O que virá depois?

Jornalista Ariadne Araújo, colunista do O POVO (Foto: Robertt Frans - Especial para O POVO)
Foto: Robertt Frans - Especial para O POVO Jornalista Ariadne Araújo, colunista do O POVO

Na hierarquia da violência contra estrangeiros, algumas nacionalidades ouvem mais que os brasileiros a infâmia do “volta para tua casa”. Mas, ouvimos também. Lembrando que, se Portugal mandasse embora os estrangeiros, o país morreria de inanição, em poucos anos. Números estatísticos, não coisa da minha cabeça.

Brasileiros, nepaleses, indianos, cabo-verdianos, angolanos repovoam os desertos do interior, sustentam o Sistema de Segurança Social, trazem um multiculturalismo necessário a um país engessado e, no entanto, sentir-se em casa está cada vez mais difícil.

A nova lei dos estrangeiros veio complicar ainda mais o que já era complicado. Estimula comportamentos de ódio, de uma parte da população. Avalisa suspeitas, separa famílias e empurra milhares para a ilegalidade.

A tempo. Um estudo recente do Observatório Europeu dos Meios de Comunicação Digitais (Edmo) mostrou que Portugal transformou-se no epicentro da desinformação, quando o assunto é imigração.

 *Ariadne Araújo é jornalista, autora do livro "Bárbara de Alencar", da Fundação Demócrito Rocha, coautora do "Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos" (Ed. Escrituras) e cronista d'O POVO+

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