Todas as expectativas estavam no voto do ministro Luiz Fux na quarta-feira, 10 de setembro de 2025, o quinto dia do julgamento da ação penal 2668. O ministro, integrante da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), era o terceiro na sequência de votos no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e sete aliados por tentativa de golpe e quatro outros crimes. Como a turma é composta por cinco integrantes, a expectativa é que Fux poderia formar maioria.
Até o momento da leitura, ninguém tinha certeza. Nos dias iniciais do processo, o ministro demonstrou divergir das posições de colegas de Corte. Fux chegou a interromper o voto do relator, Alexandre de Moraes, e prometeu se pronunciar sobre os pedidos de defesas, apreciados anteriormente pela Primeira Turma.
Fux já havia se manifestado diferente. O ministro foi alvo direto de ataques de Bolsonaro (PL), enquanto presidia o STF. Na época, defendeu a Corte das ameaças do Executivo e elogiou a atuação de Alexandre de Moraes. Fux é ainda considerado “punitivista”, negou diversos habeas corpus em casos anteriores e julgou os condenados do 8 de janeiro.
De novo, a tendência era de divergência, ainda que houvesse dúvidas de quanto. O voto, no entanto, foi tomado com mais surpresa do que o esperado. Dos oito réus, somente o ex-ajudante de ordens, Mauro Cid, e o general Braga Netto foram condenados por Tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
No final das contas, o ministro levou mais de 12 horas em voto. Iniciada às 9h10min, a sessão encerrou-se apenas às 22h45min, entre bocejos e rostos cansados dos outros ministros.
O ministro acatou as preliminares da defesa quanto à competência do STF. Para ele, o julgamento não deveria correr na Corte, pois os crimes teriam sido cometidos quando os réus já estavam sem foro privilegiado. Caso fosse considerado o foro, Fux defendeu julgamento em Plenário.
Acatou a tese de cerceamento da defesa. Reclamou do prazo e disse que o material estava desorganizado. “Como se não bastasse, novos arquivos foram incluídos”, disse. Sobre a delação de Cid, no entanto, a acolheu.
Defendeu a suspensão de todos os crimes contra Alexandre Ramagem. O réu, é o único a não responder pelos cinco crimes imputados pela PGR (Procuradoria-Geral da República), já que teve dois delitos suspensos pela Câmara dos Deputados.
Inicialmente Fux dividiu o voto por crime, pontuando as premissas teóricas. Considerou que a trama golpista não configura como organização criminosa, já que os réus não pretendiam cometer delitos de forma estável e permanente. Também disse que é preciso armamento, que não teria sido usado pelos réus.
Passou para as acusações de dano qualificado e deterioração do patrimônio público, referentes ao 8 de janeiro. Votou pela absolvição. O atentado teria sido provocado com o intuito de abolir o Estado Democrático, uma acusação mais grave.
Portanto, para Fux, o crime não deve ser acumulado, mas integrado neste outro. Considerou ainda não haver evidências nos autos de que os réus se omitiram de impedir a vandalização dos bens públicos no dia 8 de janeiro.
Por fim, a tentativa de golpe de Estado. Fux discorreu sobre o conceito de democracia e o sistema de freios e contrapesos, que no direito constitucional, estabelece que cada um dos três poderes têm autonomia para exercer sua função, mas, ao mesmo tempo, são regulados uns pelos outros.
Isso, segundo ele, serviria para assegurar que nenhum deles obtenha o poder absoluto, tornando inviável para um plano ou ideia, “ainda que reprovável”, nas palavras do ministro, ser capaz de abolir o Estado Democrático de Direito.
Após mais de dez horas de justificativas — que geraram descontentamento entre os colegas e piadas pontuais do ministro Flávio DIno —, Fux mudou a lógica do voto e passou a pontuar cada réu de forma independente. O ato, em uma possível tentativa de apressar seu discurso, o levou a repetir, mais de uma vez, frases e acontecimentos dispostos em seus documentos.
Tossiu, bebeu água, pigarreou e prosseguiu na absolvição total de Jair Bolsonaro, general Paulo Sérgio Nogueira, Augusto Heleno, Almir Garnier, Anderson Torres e Alexandre Ramagem. Votou pela condenação de Mauro Cid e Braga Netto pelo crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
O teor do discurso foi diferente dos defendidos até então — por Moraes e Flávio Dino —, sem “piadas” ou referências a outros colegas do STF. Não citou sequer o nome de outros ministros (fora o relator Moraes), pois considera a postura “deselegante”. Até a roupa, sem cores vibrantes ou detalhes chamativos, destoava.
Os termos utilizados foram outros. Uma das expressões mais trazidas pelos ministros — democracia — entrou no voto de Fux apenas após 1h30min do início dele. O ministro optou por citar pelo menos 20 juristas diferentes para embasar o argumento, além de palavras como “justiça”, “diversidade" e “igualdade”.
Antes mesmo de discordar “ao vivo” de Moraes, Fux já apresentava “pistas” de que iria divergir dos demais colegas — propensos à condenação dos réus no caso da trama golpista.
Quando Bolsonaro foi acusado de coação e obstrução de investigação do STF neste mesmo processo, a Primeira Turma votou por aumentar as medidas cautelares; dentre elas o uso de tornozeleira. Fux foi o único a divergir.
Ele alegou que as medidas restringiam “desproporcionalmente direitos fundamentais, como a liberdade de ir e vir e a liberdade de expressão e comunicação, sem que tenha havido a demonstração contemporânea, concreta e individualizada dos requisitos que legalmente autorizariam a imposição dessas cautelares”.
Em outra ocasião de destaque, o ministro defendeu uma pena mais branda que a aplicada pelo restante da Turma para uma participante do 8 de janeiro. A mulher havia pichado a frase “Perdeu, mané” no monumento localizado em frente ao STF.
Após horas de voto, para a surpresa de todos, Fux apontou para a condenação de Mauro Cid por tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. No entanto, ressaltou que declarações "infelizes" ou a "irresignação" de políticos não devem ser classificadas como crime.
Ele argumentou que uma interpretação muito ampla desse tipo penal poderia cercear a liberdade de expressão e prejudicar a democracia, destacando que "ninguém pode ser punido pela cogitação".
Grazielle Albuquerque, jornalista e doutora em ciência política pela Universidade de Campinas (Unicamp), faz uma análise que contextualiza o voto de Fux dentro do que a ciência política chama de "modelo estratégico".
“As decisões do Supremo, como corte, e dos ministros individualmente, respondem mais à conjuntura política-histórica, aos interesses, do que propriamente a um modelo de que A é igual a B”, explica.
Grazielle enfatiza que Fux foi "muito além das expectativas" de flexibilizar as penas, chegando a "derrubar a competência do Supremo para o julgamento de uma maneira mais larga" nas preliminares, um ponto que ela considera crucial e que poderia, em outra composição do Supremo, levar a uma revisão do processo.
Para a pesquisadora, essa característica do Supremo, de mudar seu entendimento em diversos casos (como o exemplo da prisão em segunda instância), e a imprevisibilidade decorrente da dependência da conjuntura política, "contribui para uma imagem negativa da corte".
Ela argumenta que esse comportamento estratégico, comum em cortes latino-americanas, gera um desgaste da imagem da cúpula do judiciário, em vez de uma previsibilidade na forma de atuação da corte.
Para tanto, a reação do núcleo bolsonarista foi otimista, em princípio. No X (antigo Twitter), o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) compartilhou diversos vídeos em apoio ao posicionamento do ministro.
Em uma das publicações, Flávio escreveu: "O que pedimos desde o começo era a aplicação da lei, independentemente da crença ou escolha política do ministro relator. Fux traz luz a todas as injustiças que Bolsonaro sofreu".
Já o deputado federal André Fernandes (PL-CE), disse que o ministro os “encheu de orgulho” e está “honrando a toga”. Afirmou também que ele “traz esperança”.
O voto histórico no julgamento de Bolsonaro provocou ainda um “resgate” de elogios de ex-aliados do ex-presidente da República ao ministro. Lembranças circularam nas redes sociais.
Conversas vazadas em 2019, por exemplo, mostravam o celular de Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa do Ministério Público na Lava Jato, com mensagens de confiança a Fux. Em conversa com Sérgio Moro, juiz do caso, Dallagnol dizia ter conversado com Fux sobre a Lava Jato, no que o ministro teria dito que podiam contar com ele. Moro respondeu: "In Fux We Trust" (No Fux, nós confiamos).
Outros comentários, no entanto, apontaram “contradições” no voto de Fux, levando em consideração posturas anteriores do ministro, não apenas em condenações, mas em falas críticas a Bolsonaro e aos ataques dele ao Judiciário.
Luiz Fux foi presidente do STF entre 2020 e 2022, quando começaram os ataques de Bolsonaro ao Judiciário brasileiro. Segundo as acusações da Procuradoria Geral da República (PGR), este também seria o período inicial (2021) das ações da trama golpista.
Às primeiras declarações do então presidente, Fux reagiu imediatamente. Em 7 de setembro de 2021, o ministro do STF lembrou que o “desprezo às decisões judiciais pelo chefe de qualquer dos Poderes, além de representar atentado à democracia, configura crime de responsabilidade, a ser analisado pelo Congresso Nacional”. Na ocasião, Bolsonaro havia dito que não cumpriria mais decisões do Supremo.
“Ninguém fechará esta Corte. Nós a manteremos de pé, com suor e perseverança. No exercício de seu papel, o Supremo Tribunal Federal não se cansará de pregar fidelidade à Constituição”, afirmou Fux.
Inúmeras declarações semelhantes foram ditas pelo ministro. Em 2 de agosto de 2021, sem citar diretamente Bolsonaro, Fux alegou que “os juízes precisam vislumbrar o momento adequado para erguer a voz diante de eventuais ameaças” à democracia e as instituições brasileiras.
Em 18 de maio de 2022, ele defendeu o trabalho de Alexandre de Moraes sobre o inquérito das fake news, que seria um processo necessário para proteger o STF de “atos preparatórios de terrorismos”.
“A par dessas manifestações patéticas, a partir desse momento, várias coisas sérias se iniciaram. Ameaças sérias contra a vida de ministros do Supremo Tribunal Federal, contra familiares de ministros do Supremo Tribunal Federal, planos detalhados de atentados em aeroportos contra ministros do STF. Ou seja, os radicais começaram a se sentir fortalecidos”. justificou.
Contradição apontada foi ainda a postura do ministro ao condenar os envolvidos no 8 de janeiro, ao mesmo tempo em que julgou a Corte “incompetente” para julgar os arquitetos diretos do crime.
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