A publicação de uma nova espécie de planta ancestral da flor de lótus mexeu as estruturas da paleontologia brasileira. Primeiro, porque o estudo descreve uma espécie que preenche uma lacuna evolutiva das angiospermas, as plantas com flores.
Segundo, porque o holótipo da folha está no exterior e a maioria dos pesquisadores do artigo são brasileiros. Isso levantou a crítica de alguns paleontólogos de que eles estariam contribuindo para a “lavagem” do fóssil em acervo estrangeiro.
Além do fato legal de que o holótipo deve ser repatriado para o Brasil, o estudo expõe o dilema ético que os brasileiros enfrentam por causa do tráfico de fósseis e como a luta é mais complexa do que se imagina.
Conteúdo da tese de doutorado de William Vieira Gobo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a pesquisa A new remarkable Early Cretaceous nelumbonaceous fossil bridges the gap between herbaceous aquatic and woody protealeans foi publicada na revista científica Scientific Report no dia 2 de junho de 2023. Nela, os pesquisadores — majoritariamente brasileiros — descrevem uma nova espécie de planta caririense.
Ela é a Notocyamus hydrophobus, uma planta que viveu entre 125 milhões de anos e 113 milhões de anos no Cariri, durante o Cretáceo Inferior. Naquela época, a paisagem era de vários paleolagos rasos e variedade de insetos, peixes, plantas, tartarugas, sapos e pterossauros.
O fóssil preservado em pedra Cariri conservou praticamente toda a estrutura da planta: das raízes às folhas, inclusive com frutos e várias
Além disso, ela é o registro mais antigo e completo do grupo no mundo e um dos poucos da parte Sul do planeta. Até então, fósseis dessas plantas foram majoritariamente encontrados no sul da Laurásia (supercontinente que unia a Europa e a Ásia) e na porção norte do Gondwana (supercontinente com as Américas e a África).
Por isso, entendia-se que o bioma ancestral dessas espécies era de climas temperados em detrimento dos tropicais. Com a Notocyamus, a lógica muda um pouco, indicando que as áreas tropicais paleoequatoriais “foram um importante centro de diversificação inicial de eudicotiledôneas no Cretáceo Inferior” antes de se espalharem para as latitudes mais altas. Eudicotiledôneas são o grupo mais diverso de angiospermas, com cerca de 200 mil espécies, entre elas o feijão, o ipê-amarelo, a soja e o cacto.
O problema é que o fóssil da Notocyamus hydrophobus está no acervo do Museu de História Natural de Berlim (Museum für Naturkunde), na Alemanha. Como ele chegou ao país é incerto, mas a legislação brasileira obriga que todos os holótipos de fósseis brasileiros, mesmo os estudados no exterior, devem estar depositados em acervos nacionais.
No entendimento de uma parcela dos paleontólogos brasileiros, estudar fósseis nacionais sabendo da ilegalidade deles no exterior seria uma maneira de “lavar” o material.
O Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens (MPPCN), em Santana do Cariri, destacou que solicitou a repatriação do material antes da publicação da pesquisa, na qual uma das autoras é da Universidade Regional do Cariri (Urca).
Em nota, a instituição esclareceu que “o estudo foi concebido dentro do escopo de projetos de cooperação científica internacional entre pesquisadores do Brasil e da Alemanha (Projeto Probral)”, e que possui um termo de cooperação em vigor com o Museu de História Natural Senckenberg (Alemanha) pelo qual ocorrem as tratativas de devolução de fóssil. “Da mesma forma, estamos em negociação com outros Museus Públicos Alemães, incluindo o Museum für Naturkunde Berlin para repatriação de patrimônios fossilíferos da Bacia do Araripe.”
Mesmo destacando que o caso da Notocyamus seja diferente do Ubirajara no que consta o colonialismo científico, já que o estudo foi protagonizado por pesquisadores brasileiros, o MPPCN reforça que a repatriação do material é “indispensável” para a “plena adequação às melhores práticas de cooperação internacional”.
Leia a nota na íntegra clicando na imagem abaixo:
Publicado no dia 23 de junho de 2023 às 11h10min
O Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens vem, por meio deste, registrar o reconhecimento ao trabalho dos pesquisadores envolvidos no estudo A new remarkable Early Cretaceous nelumbonaceous fossil bridges the gap between herbaceous aquatic and woody protealeans, de autoria de Gobo et al., 2023. O trabalho em questão representa um importante achado que auxilia na compreensão da evolução das angiospermas.
Adicionalmente, esclarecemos que o estudo foi concebido dentro do escopo de projetos de cooperação científica internacional entre pesquisadores do Brasil e da Alemanha (Projeto PROBRAL) sendo, inclusive, objeto de tese de doutoramento do primeiro autor, pesquisador brasileiro. Agências de fomento brasileiras e alemãs (CNPq, CAPES e DAAD) financiaram oficialmente essa pesquisa. Além disso, a maior parte dos autores pertencem a instituições brasileiras, como a UFRGS, UFC e URCA.
Aproveitamos a oportunidade para informar à comunidade paleontológica brasileira que o Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens possui termo de cooperação em vigor com o Senckenberg Forschungsinstitut und Naturmuseum, por meio do qual mantém tratativas para repatriação de material fóssil presente nas instituições vinculadas. Da mesma forma, estamos em negociação com outros Museus Públicos Alemães, incluindo o Museum für Naturkunde Berlin para repatriação de patrimônios fossilíferos da Bacia do Araripe.
Nesse cenário, qualquer especulação sobre uma possível relação entre o trabalho em questão e o caso do “Ubirajara” é equivocada e descontextualizada. O colonialismo científico que se materializou no caso “Ubirajara” não está presente na publicação em tela. No entanto, é necessário perceber que, para a perfeita aderência à legislação brasileira em vigor, a repatriação do material é indispensável, no sentido da plena adequação às melhores práticas de cooperação internacional.
Por fim, é necessário perceber que o material fossilífero brasileiro localizado fora do Brasil, quando qualificado e valorado como material tipo, por meio de cooperação científica com pesquisadores e estudantes brasileiros, ganha, a partir da sua publicação, condições mais objetivas de repatriação. Tal entendimento reafirma o consenso de que o acesso a patrimônios fossilíferos brasileiros ainda localizados fora do Brasil deve ser garantido.
O Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens reitera seu compromisso com a salvaguarda do patrimônio fossilífero do Araripe e com o desenvolvimento da região, a partir de políticas de desenvolvimento sustentáveis que privilegiem oportunidades para o povo do território.
Ao O POVO, o presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP) Hermínio de Araújo Júnior reforça que cada caso deve ser analisado com cuidado. Enquanto no Ubirajara o estudo desrespeitava as leis brasileiras ao ter nenhum pesquisador brasileiro e pelos autores negarem sistematicamente a devolução do fóssil, na Notocyamus a repatriação foi iniciada antes da publicação do artigo. "A gente não vê sentido em pedir que a revista tire a pesquisa do ar porque a repatriação já está encaminhada", comenta Hermínio.
Durante o 9º Simpósio Internacional sobre Pterossauros (Crato Ptero), um grupo de especialistas em pterossauros reuniu-se no Crato, município do Cariri, para também discutir a repatriação de fósseis. Na mesa, levantou-se o caso da Notocyamus.
No debate, um grupo de paleontólogos defendeu que o fóssil deveria ter sido devolvido ao Brasil antes de ser estudado. Para eles, estudar o material enquanto ele ainda está em repositório estrangeiro é antiético, já que ele estaria necessariamente em situação ilegal - por estar fora do Brasil.
Muitos compartilharam experiências de quando ainda eram estudantes e receberam propostas de instituições internacionais para pesquisar materiais brasileiros na mesma condição da Notocyamus. A prática é comum, afirmam, porque as universidades sabem que o Brasil exige participação brasileira nos estudos de materiais nacionais.
Na opinião deles, os pesquisadores deveriam negar essas ofertas. O intuito é impedir a publicação desses fósseis até a instituição detentora decidir repatriá-los.
Vale destacar que a percepção sobre o caso da Notocyamus é mais complexa e divide opiniões: há também aqueles que veem a situação sem a perspectiva colonialista e antiética.
A sugestão de parte dos paleontólogos é criar protocolos de conduta junto à SBP. Ao O POVO, o presidente Hermínio de Araújo Júnior explicou que a sociedade não têm um código de conduta voltado a casos como o da Notocyamus porque a reformulação anterior "não tinha previsto propor uma atitude nestes casos". "A exposição a essas situações têm ocorrido mais nos últimos anos", diz.
Hermínio afirma que a SBP deve convocar a comissão que trabalha o código de conduta nas próximas semanas para padronizar qual deve ser o comportamento adotado pelos paleontólogos brasileiros. O texto deverá ser discutido e aprovado em Assembleia Geral, no final do ano.
Reportagens do O POVO exploram o universo dos fósseis do Brasil e do mundo