O que seria uma floresta de gente? A definição tem cenários diferentes para cada um que lê a pergunta. Em Parelheiros, periferia da zona sul de São Paulo, essa concepção de florestamento se ergue a partir do plantio de 10.639 árvores desde a última quinta-feira, 5, Dia Mundial do Meio Ambiente.
A ação, promovida pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac), faz parte do movimento "Contra o Racismo, Eu Planto" e é referência à Lei 10.639/2003, medida que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas.
"Os jovens estão registrando as histórias dos moradores de Parelheiros, elas estão guardadas num repositório e depois vão para o Museu da Pessoa. A ideia é que as árvores tragam trechos", intenciona a educadora social Bel Santos Mayer, coordenadora geral do Ibeac, em entrevista ao O POVO durante a XV Bienal Internacional do Livro do Ceará.
Em meio ao desalento ambiental, a transformação propõe uma metamorfose simbólica num território onde 60% da população é preta ou parda e 49% tem até 29 anos.
A educadora acompanha de perto as mudanças que acontecem no distrito. Esteve à frente da decisão de instaurar a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura no bairro após o mesmo ser eleito como a pior região da cidade para morar em 2008 - mesmo tendo a maior reserva vegetal de São Paulo, não usufruía do acesso a direitos básicos.
"Tão importante como ter comida no prato, é ter histórias e livros na mão", justifica Bel ao esmiuçar o poder revolucionário da literatura que a acompanha desde a infância.
Cresceu com as narrativas compartilhadas pelos pais, parte dos nordestinos que migraram para a capital paulista, o que a ajudou a desenvolver repertório suficiente para auxiliar na alfabetização de jovens no Parque Santa Madalena, onde morava, com somente 14 anos.
Foi a primeira da família a se formar com diploma em Matemática, mas acabou sendo convertida pelas letras.
Desde então, se tornou mestra em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Turismo (EACH/USP) e está na gestão da Rede LiteraSampa, pontos de destaque no currículo extenso de quem atua há mais de quatro décadas na formação de leitores. É, pela força do querer, ativista da leitura e defensora do encanto pelas palavras.
O POVO - Nós estamos falando em um momento muito oportuno para essa conversa, dentro da Bienal Internacional do Livro do Ceará - um evento muito querido pela população do Estado - e realizando a entrevista dentro da Casa Vida&Arte. Você traz uma narrativa para a programação sobre a importância das bibliotecas comunitárias e da mediação de leitura. Queria que você explicasse, a partir da sua vivência, o que faz esses espaços comunitários serem transformadores na vida das pessoas...
Bel Santos Mayer - As bibliotecas de acesso público nos une enquanto bibliotecas públicas, escolares e comunitárias. Todos constituímos espaços abertos ao público. Criança, adolescente, jovem, adulto.
A questão que a biblioteca comunitária traz é que ela acontece em espaços em que geralmente o Estado não chegou. Ela nasce de uma ausência do Estado, de ausência de uma política de cultura, de acesso aos livros e à leitura.
E essa ausência se junta com um desejo de indivíduos ou instituições que querem garantir esse direito humano.
Quando a gente fala de direito humano, a gente está falando daquilo que é essencial. Tão importante como ter comida no prato, é ter histórias e livros na mão. Como a gente alimenta, hidrata esse desejo, esse sonho de encontrar palavras para dizer o que a gente sente e para dizer também aquilo que a gente quer inventar. É isso que a literatura faz com a gente.
OP - Quando você fala destes espaços nos quais o Estado pode não chegar, quais são as políticas públicas necessárias para que as bibliotecas não apenas existam, mas também possam ter oportunidades de expansão?
Bel - Aqui a gente está num evento no qual o livro está no centro, mas tem uma programação bastante densa sobre as conversas, sobre os livros. Então, tem encontros com autores, autógrafos, ações de histórias, mediação de leitura, eventos musicais.
Gosto de dizer que a gente não está falando de “literatura e”. A gente está dizendo de “literatura é”. Literatura é a contação, a publicação, o corpo, a música. A professora Leda Maria Martins fala: "O corpo é um corpo-tela”.
O nosso corpo tem escrito uma série de histórias e palavras. Quando a gente vai falar de uma política de biblioteca, a gente tem que pensar em tudo isso, nos corpos que ocupam esses espaços.
Então, a gente tem que pensar em acessibilidade. A gente não tem um acesso comum a pessoas letradas e a pessoas que não foram alfabetizadas. Como essas pessoas podem acessar livros se a biblioteca não é para ela?
Como uma pessoa com baixa estatura, não só as crianças, mas também adultos com baixa estatura, pode ter o livro ao alcance das suas mãos? Os livros precisam estar dispostos para todos os tipos de estatura. Uma pessoa com dificuldade de mobilidade, precisa poder acessar esse espaço. Isso a gente falando desse corpo que ocupa a biblioteca.
Mas se a gente for falar de gosto, a gente acabou de se conhecer. Eu não sei do que você gosta de ler. Eu não sei quais são os seus interesses. Como que a gente pode saber quais são os gostos, os interesses de todas as pessoas? Isso não é possível.
Uma biblioteca tem que ter algo que se chama biodiversidade. Ela tem que considerar a diversidade de gênero, de autoria. Tem que ter livros escritos por autores jovens e autores que são jovens há mais tempo, autores indígenas, negras, de toda região do nosso País.
Uma política pública que funcione para as bibliotecas periféricas, para as bibliotecas comunitárias, tem que ser uma política que dê margem para a diversidade e necessidade de cada território. Política de biblioteca e de leitura não é só distribuir livro e muito menos distribuir os livros que não conseguiu vender.
Quando digo: "Quem é que lê qualquer coisa?”. Quem já é leitor. Quem não é leitor precisa da melhor trama, das melhores ilustrações, das melhores publicações, porque ele precisa ainda ser encantado pela palavra.
OP - Nesse contexto, qual é a importância das mediações de leitura? Por que essas dinâmicas de mediação são portas de entradas tão importantes para conquistar um novo público de leitores?
Bel - Hoje de manhã eu estava na mesa com a Fabíola Faria, uma pessoa muito importante nesse espaço das políticas públicas de leitura em Minas Gerais e no Brasil. Ela falava algo muito importante: às vezes a gente pensa em mediação só como o fato de pegar um livro e ler para alguém.
A Fabíola falava que uma biblioteca, todo o espaço dela, é mediadora. Uma biblioteca cheia de grades e catracas, com alguém na porta perguntando: “Quem é você?”, ela já tem um espaço pouco mediador de aproximação.
Imagina uma biblioteca num território que você tem muitas pessoas de várias origens e na parede da biblioteca está escrito “Seja bem-vindo” em vários idiomas. Isso já é uma mediação. Porque você encontrar na sua língua alguém dizendo: "Vem”.
Depois você encontra na estante um livro de um autor que é do seu território, que te faça lembrar. Tudo isso é mediador. A gente entendeu há um tempo que precisa ter expositores, porque isso chama atenção; ter pessoas que fazem os livros caminharem, saírem da estante e irem para a rua.
Não é possível fazer mediação sem conversar. O mediador de leitura é um perguntador. Poucas pessoas vão chegar na biblioteca, isso é mais comum nas relações escolarizadas. A mediação é feita desse conjunto, olhar os espaços, construir estratégias de convite e de aproximação, de perguntas, e ler. Sem leitura você não consegue fazer a indicação.
OP - Como você pontuou, eventos como a Bienal são importantes porque as pessoas conhecem as histórias, podem perguntar sobre assuntos de interesse e, assim, vai formando cadeiras de novos leitores…
Bel - Verdade, é super lindo. Adoro feiras de literatura, bienais. É tão bonito você ver as crianças. As pessoas querem se fotografar perto dos autores, perto dos livros. Aí depois ela vai descobrir o que é, está tudo certo.
O importante é a gente conseguir conviver nesse ambiente que fala de literatura, de palavras. Eu venho de uma família que não tinha estante de livros em casa, mas nunca faltou história.
Hoje, quando venho e encontro lá no espaço do cordel muitas histórias que minha avó contava, poder encontrá-las e levar para minha mãe e falar: "Mãe, lembra aquela história que a avó contava? Está aqui. Alguém escreveu”. Isso é muito importante.
Quando a gente tira foto com alguma autora que se parece conosco, a gente se sente pertencente. Tudo isso é mediação de leitura, todos são jeitos de transformar leitores.
OP - São décadas na educação social, sendo ativista da leitura. Agora, nós temos no Ministério da Cultura uma secretaria de Formação, Livro e Leitura. Quais são as principais diferenças do cenário da leitura nas escolas em comparação com o início, quando você começou a trabalhar na educação social?
Bel - Sou uma matemática convertida à literatura, não comecei na literatura, mas acho uma mudança grande de cenário. Hoje, dificilmente a gente vai encontrar alguém que ache que ler é uma bobagem.
A gente já partiu de um tempo em que se achava que leitura era bobagem, a gente passou tempos em que mulheres eram proibidas de ler. A gente vai continuar tendo situações de censura, mas a gente não tem mais quem ache que ler seja uma bobagem.
A gente saiu recentemente de um governo que não tinha Ministério da Cultura, mas digo que até eliminar o Ministério é um reconhecimento de sua importância. Se não fosse importante, teria ficado ali. Tirá-lo é porque sabe que a literatura, a cultura, a arte de modo geral, discute as verdades, nos traz a possibilidade de pensar e de discutir outras dores.
Quando a gente tem diversidade de autoria, começa a ler autores e as autoras negros, indígenas, a gente começa a entrar em contato com outras dores que não eram nominadas, que não estavam presentes na literatura.
A gente tem muito para caminhar, ter uma secretaria não resolve. É um marco importante, mas a gente não pode se iludir e achar que a solução para nos tornarmos um País de leitores e leitoras está em alguém ou em um órgão.
Se cada um de nós não assumir a sua responsabilidade - estados, pessoas, coletivos e empresas - e enfrentar o não letramento, se cada um de nós não assumir a responsabilidade e encantar pessoas pela leitura e pelo pensamento, não tem jeito. Não tem política que se sustente.
Agora, a gente tem que ter política que entenda que é mais do que distribuir livros. Temos que ter mediação de leitura, bibliotecas dentro das escolas, possibilidades das pessoas terem recurso para comprar o livro. A gente não tem que precisar escolher sempre se a gente vai comer ou comprar um livro.
OP - Quando a gente traz o ativismo literário como uma forma de luta diária, quais são os principais obstáculos que podem ser enfrentados ao longo do caminho nesse atual momento?
Bel - Cada um de nós, no lugar onde a gente está, tem que olhar em volta e perguntar: quem não está aqui? A gente tem que olhar para a programação das bibliotecas, dos eventos e perguntar: “Quem é que está aqui?” No passado, a gente dava uma resposta muito simples: vem quem quer, quem não está, não quer.
Hoje a gente tem dados suficientes para dizer que não é bem assim. Muitas pessoas não chegam porque os obstáculos são muito maiores, porque aquilo que deveria ser direito é tratado como privilégio. Então, cada um de nós tem um poder de decisão. A gente tem que falar quem não está aqui e (se perguntar): como convido para que essa voz seja ouvida?
Ter uma curadoria de uma Bienal como essa, que está na sua 15ª edição, com mulher indígena, mulher travesti, mulher negra. Isso é uma decisão, não acontece de forma espontânea. Se não tem essa diversidade, a gente está sempre com as mesmas pessoas, os mesmos livros, as mesmas conversas.
A poeta Audre Lorde (1934 - 1992) tem um poema que gosto muito e diz assim: "Bons espelhos não são baratos". Ah, mas para a gente trazer um grupo do interior, para trazer gente do Brasil inteiro, saí caro. Bons espelhos não são baratos.
A gente pode escolher ficar com os espelhos, distorcidos, que a gente sempre teve. Mas se a gente quer que as pessoas se vejam, se reconheçam, se identifiquem com aquele evento e com aquela literatura, tem que investir nisso.
OP - É importante trazer a curadoria desse evento, porque também fala um pouco da sua proximidade com a produção literária do Ceará. Queria que você falasse um pouco do que conhece e do que acha interessante no movimento literário aqui.
Bel - Primeiro, morro de inveja dos nomes das cidades que vocês têm (ri). Tem uma criatividade, né? Uma literatura tão presente no criar, falar, pensar. Vocês têm uma Bienal sem catracas, gente. Parece pouca coisa e não é. Ah, tem um estacionamento que é caro, é verdade. Mas tem muita gente aqui que chega de transporte público. Isso já é algo lindo, garantir o acesso.
Conheço a Jangada Literária, que é uma rede de bibliotecas. Em rede a gente faz mais, se conhece melhor, consegue ter mais força. Eles estavam aqui em peso participando dos eventos.
Fui visitar a comunidade do Curió, que tem mulheres à frente, uma comunidade que fez uma construção coletiva. Isso é transformador na vida da gente. Tudo que nasce ali, vai nascendo também coletivamente. Sou muito admiradora de tudo aquilo que vocês têm feito aqui, é uma honra estar aqui com vocês.
OP - Você é uma das coordenadoras do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac). Quais são os planos do projeto? A gente poderia ter uma via de mão dupla com o Ceará?
Bel - Fundei uma nova fase do Ibeac em 2007, quando a gente leva as ações para um único território. O Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio à Comunidade já trabalhou com várias políticas: formação de agentes comunitários de saúde; de quarteiras da floresta; de lideranças indígenas, de profissionais de saúde.
Em 2008, a gente começa a trabalhar e concentrar tudo que a gente sabia fazer num único território. Que território é esse? (Parelheiros) O lugar que na cidade de São Paulo era considerado o pior lugar para se nascer e viver, porque tinha os piores índices de desenvolvimento humano.
E não existe um pior lugar sem um melhor lugar. Alguém está se beneficiando daquele pior lugar para ser considerado melhor. A gente concentra as nossas ações em Parelheiros, cria uma biblioteca dentro do cemitério. Hoje são cinco bibliotecas comunitárias.
Hoje a gente tem um terreno que a gente chama de “Todos os Nossos Sonhos”, onde vamos plantar 10.639 árvores. Vamos começar, no mês junho, a plantar 1.000 árvores, e chamar esse movimento de “Contra o Racismo, Eu Planto”.
A gente está plantando a quantidade de árvores que é o número da lei contra o racismo na educação, isso num território em que 60% da população é negra ou indígena e 60% da população tem até 19 anos.
Nesse lugar, a gente tem que plantar árvores mesmo. “Contra o racismo, eu planto”, é também dizer “contra o racismo, eu leio”, “contra o racismo, eu transformo a realidade que estou inserido”.
Tudo isso está envolvido dentro do plano da organização, dentro do meu projeto de vida. Sonho em ver essas árvores crescerem. A minha expectativa é viver bastante e ver nascer ali dentro uma floresta de gente.
O que a gente está chamando de floresta de gente? Os jovens estão registrando as histórias dos moradores de Parelheiros, elas estão guardadas num repositório e depois vão para o Museu da Pessoa. A ideia é que as árvores tragam trechos das histórias, por isso floresta de gente. A ideia é que, antes da biblioteca nascer lá dentro, as pessoas vivam a floresta.
A gente tem que andar no bosque, acompanhar o crescimento das árvores, porque isso vira eterno. Essa é a nossa ação como Ibeac. Sobre os planos, nós estamos no estado de São Paulo discutindo o Plano Estadual do Livro e da Leitura. Essa política também tem que ser pensada.
A gente não pode comprar livro com o dinheiro que sobrou. O crescimento e o nascimento de bibliotecas tem que ser planejado. Esses planos precisam trazer uma escuta com todo mundo que está no círculo do Livro e da Leitura.
OP - Dentro desse esboço de planejamento, quais seriam as prioridades nesse momento?
Bel - O prioritário é ter biblioteca. Estive com o professor Jorge La Rosa, que é filósofo, pedagogo e pensador da educação. Nós estivemos juntos em Barcelona no ano passado e ele falava que as bibliotecas são cápsulas de atenção.
E eu dizia: “E um mundo de distrações”. Se tem um lugar que a gente pode pensar os livros, as leituras, a formação de leitores, os processos de escrita, são as bibliotecas. O livro sozinho não dá conta. O autor sozinho não dá conta. A editora sozinha não dá conta. O gestor público sozinho não dá conta. Qual é o lugar que você ajunta todo mundo? É a biblioteca.
A gente tem que se juntar, não pode deixar que as bibliotecas fechem as portas, sejam elas públicas, escolares ou comunitárias. A gente tem que lutar, igual a gente lutou para ter escolas em todo lugar que tem gente.
Ali, dentro da biblioteca, precisa de livro, de leitor, de processos de escrita. Aí vamos gerando todas as outras políticas. Não pode fechar biblioteca, a gente tem que ter biblioteca em todo lugar que tem gente, isso é central.
Bienal do Ceará
Bel Santos Mayer participou da XV Bienal Internacional do Livro do Ceará com as mesas "Bibliotecas de acesso público (públicas, escolares e comunitárias): mediações para a promoção de leitura e da escrita", com Fabíola Farias (MG) e Alilian Gradela (Caucaica); e "Uma revolução de leituras", com Claudiana Alencar, do projeto Viva a a Palavra.
Prêmio Jabuti 2024
A criação da Biblioteca Comuitária Caminhos da Leitura ocasionou a conquista do Prêmio Jabuti de Fomento à Leitura em 2024.
Contra o racismo, eu planto
A campanha da Mata Atlântica em Parelheiros acontece em terreno doado ao IBEAC e à Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo. Doações são recebidas no site (www.ibeac.org.br).
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