Arco-Íris de Santa Luzia: do (em)poder(amento), faz-se o mundo
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Caroliny Braga é jornalista, comunicadora participativa, mestra em Comunicação, pesquisadora em mídias e práticas socioculturais. Dedicada ao estudo de meios e processos comunicacionais, dá cabimento à coisa de escutar mais do que ouvir e ao risco e à delícia que é contar histórias
Arco-Íris de Santa Luzia: do (em)poder(amento), faz-se o mundo
A líder comunitária, assim como na anatomia do olhar, tem sido determinante no ato de ver as pessoas e de perceber os olhos-d'água que elas são
Foto: Arquivo Asmosal
Íris Dias, liderança da comunidade Santa Luzia, distrito de Lagoinha, em Paraipaba/CE
“Minha comunidade é meu mundo. Não aceito que sua sabedoria não seja vista. Nem que sua voz seja silenciada”. A sentença é de Íris Oliveira Dias, atual presidente da Associação dos Moradores de Santa Luzia (Asmosal).
Batizada como Íris, vive numa comunidade que leva o nome de santa cultuada, na crença católica, como protetora dos olhos.
A líder comunitária, assim como na anatomia do olhar, tem sido determinante no ato de ver as pessoas e de perceber os olhos-d'água que elas são. Íris tem sido decisiva na gestão da luz que deve luzir de e para cada um que vive na comunidade Santa Luzia.
Localizado no distrito de Lagoinha, em Paraipaba, no norte cearense, o mundo de Íris tem 84 moradias, onde vivem 112 famílias, algumas em coabitação.
A ostentação de Íris é que o seu firmamento não seja só enxergado em sua totalidade, mas, principalmente, o próprio povoado enxergue a sua identidade única, rara e poderosa que tem.
A ostentação é fazer seu pessoal notar, cada vez mais, o poder identitário que tem. É contribuir para que os moradores de Santa Luzia façam a maior das pescarias: o empoderamento das pescas, a que torna a igualdade de oportunidades mais provável.
Íris foi gerada pela e na comunidade. É filha de marisqueira e pescador, profissões feitas por boa parte dos moradores de Santa Luzia. Ela lembra que, miúda, escutava dos mais velhos que só as pessoas atravessadas pelo estudo eram capazes de vencer na vida.
Mesmo sendo uma entusiasta da educação - diplomada em pedagogia, especialista em educação infantil, pós-graduada em educação e agente social sedenta por leitura - Íris, sempre, mais desconfiou da afirmação do que concordou.
“Comparando a vida da nossa gente com a vida de pessoas ricas, nossos antecessores entendiam que saberes e conquistas estavam associados apenas à chance que alguns tinham de ter acesso a estudos. Mas e o saber desses ancestrais, que é tão fundamental para economia e identidade? Esse saber que é combustível pra lidas tão sustentáveis, artesanais, com impacto ambiental tão baixo? Esse saber genuíno, que não vem de livros, não pode fazer o cidadão ter sucesso por quê?”.
Foto: Google Maps
Localização da comunidade Santa Luzia
E, com olhar cravado no arco de seu coletivo, Íris entendeu que seu mundo não estava sendo ouvido e visto porque ele próprio não se ouvia nem se via, ele próprio não entendia o poder que ele tinha para fazer as rodas do mundo rodarem.
Há quase uma década, ela, de mãos dadas com o marido, chamou outras mulheres para integrarem o importante serviço coletivo que a Asmosal já cumpria há 13 anos. E chegaram à associação com um clarão fundamental: promover ascensão social por meio do despertar das consciências ancestrais.
Para voar: raízes
Assim como o movimento Armorial - promovido pelo expansivo pessoense, escritor, dramaturgo Ariano Vilar Suassuna - Íris parece repetir, em cada movimento coletivo que ela rege ou que se engaja, coisa que é permanente nas obras de Ariano: a vida respeitada a partir dos seus princípios vitais, uma orientação de caminhos com centro assentado na base, que aconselha: "Quem não conhece suas raízes nunca saberá a extensão de suas asas", feito rezou Suassuna.
Foto: Por Lia Aguiar
Arte em estilo xilogravura, de título: Semear para colher
Para Íris, “dá pra se manter dignamente a partir dum ofício que tem como base a cultura local, desde que não se padeça de exploração”.
A comunidade de Santa Luzia é essencialmente pesqueira, tem um contingente populacional costeiro que vive, essencialmente, das lidas de baixo impacto e fazem parte deste pacote, atividades complementares a tais lidas, a exemplo da agricultura de subsistência.
“Muitos de nós conseguem cozinhar a partir do que produzem em seus quintais. Este fazer do dia a dia é muito rico. Pela sustentabilidade, pela cultura ancestral que é base de todo esse fazer. A luta da associação é pra que o pessoal de Santa Luzia entenda que o seu saber é rico e precisa ser valorizado. Sobretudo, por cada um de nós”.
Foto: Arquivo Asmosal
Frutas e vegetais cultivados pelos moradores da comunidade Santa Luzia
É possível ver Íris em evidências tratadas pelo antropólogo Carlos Sant'Ana Diegues, pioneiro no debate sobre populações tradicionais brasileiras.
O professor, doutor e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), especialista em planejamento costeiro, diz que “o conhecimento tradicional da pesca é um conjunto de práticas cognitivas e culturais, do saber-fazer e transmitir”.
Para ele e para Íris, não deixar essa cultura rarear é um modo de manter a autonomia por meio da terra. Duma terra da encosta do mar.
Foto: Por Lia Aguiar
Arte em estilo xilogravura, de título: Universo do mar
Essa é a base do movimento comunitário de Íris: fincada na autonomia econômica por meio do empoderamento de saberes; da autoafirmação de valores adquiridos ao longo de gerações; do auto entendimento sobre a capacidade de guiar e inspirar iniciativas; da valorização de experiências próprias; do celebrar-se a partir do enxergar-se amplamente; do alcance de um sossego - justo e possível a povos com acessos ao que é seu.
E, olhando para a exposição de seu propósito, Íris solta: “é simples alcançar tudo isso?”. De imediato, ela mesma responde: “claro que não!” E segue: “mas buscar por isso tem sido minha lei”.
Firme e com semblante sóbrio, ela diz que é emponderando que a gente descoloniza, que é por meio do emponderamento, principalmente das mulheres, reduzidas há muito tempo, segundo ela, que a gente pode ser capaz de iluminar apagões históricos.
E ela ainda faz um destaque às mulheres periféricas. Íris diz que o mundo muda quando são dados instrumentos para que essas mulheres enraízem suas raízes no mercado de trabalho, liderando, gerenciando e apontando caminhos.
“O mercado precisa ser impactado pelas fortalezas que elas são. E, mais do que isso, com elas compreendendo que o que elas têm pra distribuir é transformador delas próprias e do mundo”. Íris conta - com voz embargada, íris inundada - que são muitas as mulheres de Santa Luzia que ainda têm vergonha de mostrar o que sabem fazer.
Foto: Arquivo Asmosal
Grupo de mulheres que, sob a orientação da Asmosal, conversam sobre gênero e sexualidade, enquanto fazem tricô. Mais uma iniciativa em prol do empoderamento feminino
“Isso porque, pra elas, tudo que elas fazem é muito normal, básico, do cotidiano, sem valor pra mais ninguém. Porque são saberes adquiridos por repassamento, sabe? E não à base da leitura de livros. Mas são saberes, com técnicas de manejo ancestrais, raras, que nem podem morrer nem ser reduzidas nem ser ignoradas”.
E, para transformações históricas, esforços memoráveis. “Para tanta mudança, é preciso que o trabalho vire missão. Pra mim, virou. Sem que eu nem notasse”. E a missão já se espalha em ações. E, delas, já brilham luzes.
A comunidade: no poder. Todos os outros poderes: ao lado
Representante da comunidade e com profundo entendimento sobre direitos coletivos, Íris, ao lado de seus pares da Asmosal, trouxe o poder público para junto da missão.
“Afinal, a gente queria e quer, cada vez mais, a promoção da qualidade de vida, o engajamento social e o fortalecimento de valores locais. Num compromisso grande assim, entendo que é dever da política pública entrar com seus instrumentos pra aprimorar e apoiar nossa marcha". E uma série de iniciativas tem chegado à Santa Luzia.
“Meu mundo começou a entender que seu jeito de girar podia fazer girar o mundo”. E ações pontuais, perenes, a curto e médio prazos acontecem via associação.
Seja a partir de inscrições feitas e aceitas em editais de Cultura e Educação disponibilizados pelos governos federal, estadual e municipal.
Seja a partir da parceria com entidades privadas, coletivos de juventude, com organizações das mais diversas culturas e tradições. Seja a partir da comunhão entre os próprios membros da comunidade. Ajustando, despertando, firmando ou estimulando empoderamentos.
Foto: Arquivo Asmosal
Representantes da Secretaria da Cultura do Ceará em encontro com representantes de pontos de cultura presentes em Paraipaba e proximidades. A Asmosal é um desses pontos
Era uma vez: o poder dum rolezinho
O Lango Tango, que é calango, mas sonhou em ser jacaré, é um dos colaboradores da missão da Asmosal. Vindo da ficção, mas nem tanto, ele saltou, ágil e disposto, nas terras de Santa Luzia. E mostrou à Luane, de três anos, que a autoconfiança e aceitação formam dupla que clareia caminhos.
Luane é uma das 73 crianças de Santa Luzia. Matriculada em escola municipal, feito todas as crianças da comunidade, Luane é filha de dona Mazinha, cozinheira, multiplicadora de seu saber, em uma das ações da associação.
O jeito que a pequena tem de conversar, fitando nos olhos do seu interlocutor, chama a atenção de quem a assiste. Luane é atenta às prosas para as quais é instigada, e, nessas interações, demanda perguntas.
Extrapola o saber responder, ela também indaga. Sentinela, com respostas rápidas, mas elaboradas, entrega um vocabulário emendadinho, falando também com os ombros, com as mãozinhas, tratando dos cotidianos dela com propriedade.
Foto: Divulgação/Caroliny Braga
Luane, uma das 73 crianças de Santa Luzia
E, durante as conversas, de quando em quando, toca o rosto de dona Mazinha e dá cheiro no cangote da mãe, como que em reverência, uma reverência consumada por quem sabe exatamente a extensão e a valia que aquela mulher tem.
Numa de suas declarações, Luane disse: “Quando eu crescer, quero ser uma cozinheira famosa. Quero fazer a comida mais gostosa do mundo, igual a da minha mãe, e quero viajar bem muito, pra vender a comida mais gostosa do mundo”.
Íris gosta de destacar que nunca é tarde pra empoderar uma pessoa. “Mas se a pessoa tem a oportunidade de ser empoderada na infância, seu protagonismo salta, suas tomadas de decisão se vestem de confiança em si, de determinação, sua formação é firme e consciente”.
A ida de Lango Tango à comunidade, a chegada das lâmpadas que deixaram mosquitos rendidos por elas e outras contações são argumentos teatrais disponibilizados pelo Projeto Rolezinho Cultural às crianças da comunidade de Íris.
Uma das iniciativas da Asmosal, com a parceria da Flor Produções, aprovada no quarto edital Cultura Infância, do Governo do Ceará, apoiada pelo Governo Federal.
Foto: Arquivo pessoal/Asmosal
Alguns retratos de ações do Rolezinho Cultural
“Estamos entrando no quarto mês dessa ação, e as famílias têm participado tão bem! Toda a família, não só as crianças. Tenho visto isso com tanta alegria. Trazer o teatro infantil pra dentro da nossa missão teve como estratégia trabalhar autoestima, conectar as crianças a aspectos que a fortalecem por meio da arte. Vejo os pequenos mais falantes, mais perguntadores, ocupando mais lugares da nossa cidade, interagindo com outras comunidades”.
Ivina Carla, comunicadora social, escritora, agente e produtora cultural, conhece a região e atua, com alguns projetos, junto à associação. Ivina conta que o distrito de Lagoinha, de modo geral, é muito turístico, mas, segundo ela, o turismo comunitário, até bem pouco tempo, praticamente não existia.
“A orla era, muito raramente, frequentada pela própria comunidade. Mas ações instigadas pela associação têm trazido um olhar e uma vontade dos moradores pelo o que é seu. Além disso, as movimentações propostas têm dado aos residentes da localidade acesso a diversas correntes culturais, sem que eles precisem fazer grandes deslocamentos”, conta Ivina, comovida.
Maré alta à arte do poder ser
Outros dois feitos são o Cine Maré e o Cine Delas. Feitos que vieram da parceria entre a associação e os coletivos Art’Cultura (fundado por Íris), o Viver e Brilhar e o Fulô do Litoral, e foram gerados a partir de uma estratégia, digamos, socialmente sagaz.
Numa das vezes em que a associação e parceiros foram aprovados em lei estadual de incentivo, alguns insumos - com a permissão do edital - foram adquiridos, como: banquetas, projetores, pipoqueira, caixa de som e cadeiras. E, olhando para tais elementos, a nova ideia surgiu: alargar o uso daqueles objetos. Assim, nasceram o Cine Maré, para as crianças, e o Cine Delas, para as mulheres.
Foto: Arquivo pessoal/Asmosal
Uma das edições do Cine Maré
Uma vez por mês, tem “sessão de cinema” seguida de roda de conversa. E isso acontece não só em Santa Luzia, mas em outras comunidades vizinhas. Para Ivina Carla, esse foi um aproveitamento de cunho social grandioso.
“Agem assim os que têm olhar ampliado, de quem quer sempre mais pro seu coletivo. Essa é uma ação que integra. Uma atitude criativa, de baixo custo, com grande resultado. E não falo do resultado de mercado, falo do resultado da valorização de si, da socialização. O maior dos resultados”, destaca Ivina, com deferência.
Uma das mulheres da comunidade, aqui identificada como Maria Quitéria para proteção de sua identidade, conta que, em uma das sessões do Cine Delas, notou algumas vizinhas tomadas pela temática, que tinha vínculo com questões de gênero e de violência doméstica.
Uma comoção, segundo ela, “do tipo: e aquilo é violência?”. Maria Quitéria expôs que, no ato do debate pós filme, uma das mulheres mencionou uma situação, com dúvidas sobre aquilo ser ou não violência.
E, após ponderações em grupo, quando houve a comprovação de que aquilo era agressão, houve também muito acolhimento coletivo. Além do mais, a coragem de uma deu passagem à coragem de outras. E, assim, mais hostilidades foram expostas.
“Algumas mulheres já conseguiram sair de ciclos de violência, depois dessas caídas em si, depois de reconhecerem o valor que elas têm. Depois de serem empoderadas pelas mais diversas iniciativas da associação e de nossos parceiros. Depois de fortalecidas com capacitação e com encaminhamento para o mercado de trabalho”, emocionada, peito aberto, disse Quitéria.
Gravurista e tatuadora, a cearense Lia Aguiar, autora das três artes em estilo xilogravura presentes nesta publicação, conta que, ao criá-las, estava num momento de mergulho no sertão, em seus misticismos e capacidades.
Lia diz que, da sua imersão, saltaram as mais diversas imagens, todas elas com um vínculo nas sabedorias que têm nascença em raízes das mais originárias.
Foto: Por Lia Aguiar
Arte em estilo xilogravura, de título: Ave do sertão
“Esta cabeça de ave, por exemplo, gerou várias ramificações em minha cabeça, pensando nela como majestade do sertão. Nessas produções que me foram vindo, usei muito o conceito de sementes e colheita também para falar sobre minhas próprias raízes”, descreve a gravurista.
As três artes de Lia, aqui inseridas e paridas a partir do mergulho narrado pela autora, conversam bem com o mundo de Íris.
Os títulos dados a cada criação. Os elementos que ela traz. O jeito que ela costura os elementos. A ave voa, apesar de presa às raízes. As asas da ave lembram folha, mas também remetem a um abrasamento. A serpente - presente e ressaltada.
A serpente que, em inúmeras tradições indígenas, por exemplo, é símbolo de produtividade, tem vínculo à terra e à sabedoria ancestral. Ancestralidade que é o impulsionamento primeiro da missão de Íris, como na condução do projeto Memórias e Sabores dos Povos do Mar.
Memórias do mar: é espalhando que se eterniza
O projeto Memórias e Sabores dos Povos do Mar é um destaque do legado culinário das comunidades de pescadores e pescadoras de Paraipaba.
Mais um movimento que traz o transbordo forte e persistente do propósito de Íris e parceiros, um compromisso com o sagrado de Santa Luzia. Um sagrado que, segundo Íris, tem comandado, dia após dia, cada vez mais, o cotidiano da comunidade.
Realizado pela Asmosal e produzido pela Flor Produções, o projeto, apoiado pelos governos federal e estadual e aprovado no 4º Edital Patrimônio Vivo, está resgatando comidas tradicionais e saberes.
A partir de oficinas, ministradas por mulheres da comunidade, moradores do município aprenderam sobre a afetividade inventiva, sólida e única de alimentos como o grolado, a cocada gratinada na quenga de coco, o mungunzá adoçado com rapadura e a moqueca de arraia.
Íris conta que, ao receberem o convite para serem professoras, remuneradas pela iniciativa, muitas das mulheres recusaram. E, nas recusas, mencionaram questionamentos do tipo:
“Ensinar? Eu? Ensinar o quê? Não tenho nada importante pra repassar!”.
“Isso que faço é o que faço todo dia. Não tem nada de especial nisso”.
“Eu faço desde sempre, nem lembro bem quando comecei a fazer isso. Quem vai querer ser assinado por uma pessoa que nunca nem estudou?”.
“Faço esse prato sim, mas não sei ensinar, sou nem professora”.
Foi um mundo de negação. “E eu entendo. Vejo as diversas dimensões sociais que foram deixando assim muitos dos meus. Por ser ciente dessas barreiras que colocam nosso poder ancestral abaixo do chão, é que luto com a ferramenta: empoderamento”.
Segundo ela, após debates, rodas de conversa com as que não colocavam fé na sua oralidade e nas suas receitas como valores territoriais únicos, as mulheres conseguiram olhar melhor para dentro delas. Aceitarem. E foram mestres hábeis no repasse de suas essências.
Habilitaram seus vizinhos, com base nos ensinamentos que receberam ao longo de gerações. Feito expôs Íris, “ensinaram com rigor, leveza, soltas, foi bonito e impactante assistir aquilo”.
E os honorários por hora-aula foram nivelados aos que a Asmosal repassa a professores de carreira que ministram cursos via associação.
“Afinal, nossas mulheres foram e são professoras de longas estradas. E serão contratadas muitas outras vezes pela Asmosal”. Graduadas em valores territoriais, em subsistência familiar, em memórias do mar, Íris destaca que já sente as mestras fortalecidas.
Além do ciclo formativo - composto por aulas repassadas pelas mestras e por oficinas de higienização de alimentos, de nutrição, de teorias sobre cultura alimentar tradicional - no último mês, a ação lançou um produto: o Carrinho da Cultura Alimentar.
Toda a comunidade foi chamada a integrar-se às fases para a concepção do Carrinho. Desde o desenvolvimento da ideia à finalização, passando por inspirações culturais, esboço de modelos, escolha de materiais, planejamento artístico, aperfeiçoamento. Tudo.
Foto: Arquivo pessoal/Asmosal
Uma das integrantes do projeto Memórias e Sabores dos Povos do Mar, com o Carrinho da Cultura Alimentar, no dia de lançamento do produto
No lançamento, muita gente - de fora e de dentro da comunidade - presenciou o Carrinho da Cultura Alimentar e degustou de cada sabor ensinado e aprendido nas oficinas repassadas pelas mestras da cultura local. Houve som, teatro, dança, apresentações que reuniram artistas locais, grupos da cidade.
“Foi o momento pra contar a mais gente a amplitude do nosso saber e como é profunda e inventiva a nossa cultura. E também pra mostrar pra muitos de nós mesmos o quanto podemos viver do que somos, desde que tenhamos ferramentas que nos permitam isso”.
E o Memórias e Sabores dos Povos do Mar tem outro produto sendo gerado: a publicação de um livro, no início do próximo ano, com as memórias afetivas presentes nas receitas ancestrais das mulheres que integram a iniciativa.
Foto: Arquivo pessoal/Asmosal
Degustação de pratos típicos de Santa Luzia, que foram ensinados em oficinas do Memórias e Sabores dos Povos do Mar
A Ivina Carla que organizará os relatos. “Está sendo uma honra preparar esse produto. Ele será mais um documento refletor de uma identidade cultural que não pode esvair. Um livro que será reforço de uma culinária notável e única, repassada por sábios, atravessada por histórias, por muitos talentos e artes”, explica a comunicadora social.
Os relatos das 10 experiências serão reveladores memoriais das mestras, do que elas evocam quando pensam nas receitas de seus ancestrais, nos sabores que as épocas de suas vidas guardam. Épocas que são tempos que ensinam e que devem ser alargadas por iniciativas feito esta.
Foto: Arquivo pessoal/Asmosal
Apresentações artísticas, que integraram a ação de lançamento do Carrinho da Cultura Alimentar e de degustação dos alimentos típicos ensinados nas oficinas do Projeto
Ivina conta que o processo de escrita está iniciado. “E, ouvindo essas memórias, aplaudo, ainda mais, a missão de Íris. São riquezas que não podem ser deixadas no canto do esquecimento”, bendiz a comunicadora.
O mesmo norte em muitas outras iniciativas
São muitos os movimentos norteados por Íris, todos balizados por missão semelhante. “Batemos sem parar nas portas dos governos, nunca deixaremos de agir assim. Nossa participação em editais tem crescido. As parcerias com projetos do Estado e do município também aumentaram. E tem que ser assim mesmo, chamando cada um a cumprir sua função no que é determinante pro nosso grupo comunitário”.
O projeto Craque de Bola, Bom na Escola, por exemplo, acontece em areninha garantida pelo Governo do Ceará, e tem sido preponderante ao desenvolvimento de habilidades sociais e emocionais em crianças e jovens da comunidade.
Com a intervenção Pescando Arte: jogou sua rede, apoiada pelo edital estadual Cultura Viva, a associação resgata a cultura em linguagens diversas e promove a valorização da identidade territorial. Há ações formativas, oficinas de desenho, confecção de instrumentos e de cultura alimentar.
A iniciativa também reúne os maiores fazedores da cultura local para troca de experiências, uma valorização da lida ancestral e artesanal do pescador de Santa Luzia e de Lagoinha como um todo.
Segundo Íris, “esse é um reconhecimento das narrativas desse sábio, que nos é tão fundamental, que é dono de uma das principais atividades econômicas de todo o nosso município”.
Já com a cozinha da Asmosal aberta para o Programa Ceará Sem Fome (CSF), iniciativa do Governo do Ceará que combate a fome e a insegurança alimentar no Estado, a associação tem conseguido atender, com uma refeição diária, entre segunda e sexta-feira, a 100 pessoas de Santa Luzia.
Íris conta que, há uns dias, deu-se conta de uma situação que encheu a sua alma de bem-estar profundo. Segundo ela, do início das ações do CSF na comunidade até hoje, a lista de beneficiados já foi modificada algumas vezes.
“Uns que, inicialmente, haviam ficado fora do benefício, passaram a ser beneficiados. E isso ocorreu porque ações de capacitação já encaminharam alguns ao mercado de trabalho, tanto as qualificações disponibilizadas pelo próprio programa, como as inúmeras desenvolvidas pela associação e demais parceiros.”
Ao fazer substituição de nomes na lista, Íris notou que parte dos habitantes de seu mundo já teve espichamento econômico, já saiu do quadro da situação de vulnerabilidade social.
No dizer forte dela, “isso é culpa do nosso poder, do movimento incansável da nossa missão, da fortaleza que é possibilitar oportunidades, cidadania e autonomia”.
Arco de íris: recomeços e ouro em todo o trajeto
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 2023, mulheres ocupam 39% dos cargos de liderança no Brasil e, segundo o demonstrativo, elas têm foco no desenvolvimento de pessoas. Um percentual que não alcança equidade, mas já dá indícios de alguma transformação.
O mundo de Íris, por exemplo, tem motivo para comemorar: Íris compõem o Conselho Estadual de Políticas Culturais do Ceará. “Uma representação feminina e tanto”, ressalta Mirna Oliveira, produtora cultural, representante estadual de Pontos de Cultura do Ceará.
Para Mirna, a presença de uma mulher com o perfil de Íris em locais de decisão assim influencia e altera realidades próprias da desigualdade de gênero e do crescimento socioeconômico.
Foto: Arquivo pessoal/Asmosal
Posse de Íris no Conselho Estadual de Políticas Culturais do Ceará
“Ter no Conselho Estadual de Políticas Culturais presenças de mulheres do porte social de Íris garantem que vozes femininas, especialmente as de comunidades como a dela, vozes da mulher preta, da cultura do mar, sejam notadas, durante as decisões culturais”, enfatiza Mirna.
Para ela, Íris é uma essencial promotora da inclusão social de um povo marginalizado, por tempos. O Conselho é um colegiado normativo, deliberativo, fiscalizatório e consultivo, composto pela sociedade civil, vinculado à Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE).
E Íris julga “desmedido” ocupar tal assento. “Muito significativo, elementar e determinante pras buscas coletivas que temos. Pros passos que demos até aqui. Estar no Conselho é estar com meu pessoal todo junto. Carrego a comunidade comigo em cada debate. Pra mim, ocupar esta vaga é símbolo da nossa luta, que tem base comunitária, com descobertas de capacidades adormecidas e ampliação de nós mesmos”.
Sabemos, não há dúvidas, que são muitos os mundos dentro do mundo. E estar com Íris, em Santa Luzia, com sua gente, com pessoas que conhecem e participam dos movimentos de Íris, provoca uma sensação: é possível que, ao melhor rodar de cada mundo, o mundo passe a rodar mais modelar.
Com base na transformação social que já foi possível naquele arco de 84 casas, entende-se que, quando cada arco do mundo percebe seu poder, ele pode, sim, girar. Pode girar mais consonante, refletindo a memória de suas paletas ancestrais, imprimindo o tom gerador de suas gerações.
Foto: Caroliny Braga/Benjamin Braga Coelho
Alguns retratos de vivências que a colunista e seu filho Benjamin tiveram junto à comunidade Santa Luzia. Imagens:
Andando pela comunidade, dormindo por lá, provando da ventania e do sabor único contado por alimentos ancestrais. Sentindo o cheiro do Atlântico misturado à essência doce das lagoas que tem por ali. Chegando, em pau de arara, a casas de farinha da região. Conversando, madrugada adentro, com Deus e o mundo de Íris.
Acompanhando, à beira do mar, o assado dum peixe imenso, tendo a honra de ter meu filho ao lado de seu Chaguinha, o mais antigo pescador da região e, agora, professor de sua própria arte.
Encostando nas amuradas dos barcos dos mestres veleiros, como quem tenta sentir mais intimamente o sagrado que marea naquela costa. Estando ali, imersa, consegue-se entender melhor a missão que Íris puxou pro seu comando. Santa Luzia é um mundo. E observar um mundo extenso feito ele não ser visto como deve é de moer o peito.
“Pra finalizar, quero repetir uma coisa, pra que fique muito claro. Quando eu disse que doía não ver meu mundo ser visto e ouvido, isso não teve a ver apenas com meu pessoal ser impedido de falar por causa da falta de oportunidade. Teve a ver também com perceber que meu mundo não era forte pra tratar sobre seus saberes. Teve a ver com eu ter me dado conta, um dia, de que o pessoal do meu mundo, sábio e raro, não entendia o valor de sua ancestralidade, julgava seus fazeres irrelevantes. Hoje, me dá alívio, paz e emoção assistir o novo mundo em que Santa Luzia tem se transformado”.
Ser viramundo com certidão é ter a íris virada pro seu mundo
Desde miúda, Emilly, filha de Íris, acompanha a mãe e seu movimento para difusão da cultura local. Numa das primeiras iniciativas comunitárias de Íris, a fundação do grupo de dança Art’Cultura, Emilly entendeu que, atravessada pela arte, ela também queria fazer ecoar o saber de sua gente e fazer sua gente ter orgulho daquele saber.
Emilly cresceu empoderada e sabedora de seu mundo. Ao passo que é estudante de engenharia da computação, também é agente sociocultural.
Integrante fiel do Art’Cultura, Emilly ensina ancestralidade com a dança. Faz isso feito o vento que acolhe a noite de Santa Luzia, dum jeito forte e sereno. Gerada pela comunidade, Emilly já não veio filha de marisqueira e pescador.
Mas os saberes, o tom de cada batalha dos seus antepassados, as cristas que já foram tocadas pelas jangadas do pessoal dela, o poder dos seus ancestrais estão feito raiz em Emilly. Raíz tanto profunda como espelhada.
Em cada giro de Emilly pelo mundo, é o arco-íris do mundo dela que ela crava. Feito revela Gilberto Gil, em sua resistente Viramundo, símbolo popular por justiça e melhores condições, é preciso cortar desatinos, virar o mundo, ser seu mundo e querer virar e ganhar o mundo.
Íris viu que sua ancestralidade, que o saber de sua gente do mar poderia sumir. E, não por milagre, mas por insistência, bulindo em meio mundo, fez seu mundo não parar de ser o que de fato sempre foi.
Foto: Acervo pessoal
Íris e Emilly, filha de Íris
Emilly, afeita às linguagens de programação, desenvolve, junto à sua mãe, estratégias para que suas linguagens ancestrais tenham sequência (que deve ser lógica), como uma receita bem executada, como um algoritmo, que nos mostra como fazer o quê.
Enxergar Íris em Emilly é ver que um mundo ancestral pode, e deve, virar e ganhar o mundo. O arco de Íris viu-se. E tem feito arco-íris no mundo.
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