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Paleoclimaas respostas sobre as mudanças climáticas estão no passado
Ciência e Saúde

Paleoclimaas respostas sobre as mudanças climáticas estão no passado

|Meio ambiente| A área que estuda os climas pretéritos e ajuda a projetar cenários futuros pode ser a chave do maior desafio da humanidade: a emergência climática
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CAPA PALEOCLIMA / Paleoarte de reconstrução da Antártica no Cretáceo superior, durante o incêndio florestal. Na imagem, o incêndio foi provocado por atividade vulcânica. (Foto: Maurílio Oliveira)
Foto: Maurílio Oliveira CAPA PALEOCLIMA / Paleoarte de reconstrução da Antártica no Cretáceo superior, durante o incêndio florestal. Na imagem, o incêndio foi provocado por atividade vulcânica.

 

Tudo que acontece fica gravado no planeta. Das incessantes movimentações das placas tectônicas à chuva de fevereiro, nada é grande ou pequeno demais para fugir do disco rígido planetário. O surgimento das montanhas, a ascensão e queda dos dinossauros, os múltiplos caminhos do mar e os rastros de vermes ancestrais; todos são guardados pela Terra como tesouros, esperando para serem desenterrados.

Quando o são, oferecem aos descobridores pistas para a próxima aventura, e assim abrem-se as janelas do passado. A humanidade sempre foi curiosa por saber como era o mundo antes de surgirmos. Agora, a curiosidade é acompanhada de um sentimento talvez mais intenso, a urgência. Nós precisamos descobrir como o mundo era antes de nós, para sabermos o que nos espera na curva da ebulição global.

Foi assim que todas as pesquisas explorando o passado ganharam força insubstituível: apenas com a paleoclimatologia podemos prever o futuro. “A paleoclimatologia é o retrovisor do carro para a gente conseguir fazer a baliza”, define Álamo Saraiva, paleontólogo da Universidade Regional do Cariri (Urca).

No carro das mudanças climáticas, qualquer arranque para a frente depende de infinitas olhadelas no retrovisor. É possível usar dados dos padrões climáticos e a resposta dos organismos às mudanças climáticas do passado para comparação com os organismos atuais, criando então cenários possíveis. Por exemplo: dá para comparar como os corais do passado reagiam ao aumento de temperaturas e, a partir deles, inferir como os corais de atualmente irão se comportar com o aquecimento global.

De acordo com o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), as reconstituições paleoclimáticas ajudam a atribuir causas às alterações climáticas da Terra e a estabelecer cenários climáticos futuros. Veja o porquê:


 

Como se faz paleoclimatologia

Definir como eram os climas dos diferentes períodos terrestres é tarefa árdua. O planeta já passou por diferentes eras climáticas, influenciadas por fatores externos e internos. A queda de meteoros, o vulcanismo e a movimentação de placas tectônicas (portanto, toda a reorganização geográfica do mundo) influenciam o clima.

 

 

Todas essas configurações ficam registradas de alguma maneira: nos minérios, os pesquisadores podem identificar concentrações de oxigênio 18 (O18) e carbono 13 (C13) e inferir como era a composição da atmosfera e da água.

É um jogo de quebra-cabeças complexo que depende dos atuais conhecimentos básicos para inferir, a partir de comparações, como era a vida no passado. “Vamos pegar um exemplo do Cretáceo”, propõe Álamo. “Como é que a gente sabe que tinha 130% a mais de oxigênio na atmosfera do que tem hoje em dia? Olhando as rochas.”

Rio de Janeiro, 19.05.2023 - ilustração do pterossauro Caiuajara dobruskii. Pesquisadores do Museu Nacional/UFRJ, Universidade Regional do Cariri e Universidade do Contestado identificaram que a maior parte dos fósseis da espécie de pterossauro Caiuajara dobruskii, pertencia a indivíduos que estavam em seus primeiros anos de vida. De acordo com a pesquisa, estes animais jovens tinham comportamento semelhante ao das aves atuais. Arte: Maurilio Oliveira(Foto: Maurilio Oliveira)
Foto: Maurilio Oliveira Rio de Janeiro, 19.05.2023 - ilustração do pterossauro Caiuajara dobruskii. Pesquisadores do Museu Nacional/UFRJ, Universidade Regional do Cariri e Universidade do Contestado identificaram que a maior parte dos fósseis da espécie de pterossauro Caiuajara dobruskii, pertencia a indivíduos que estavam em seus primeiros anos de vida. De acordo com a pesquisa, estes animais jovens tinham comportamento semelhante ao das aves atuais. Arte: Maurilio Oliveira

Há uns 64 milhões de anos, existia mais CO2 na atmosfera do que nos dias atuais. Os paleontólogos já sabem que, nessas condições, os seres com metabolismo rápido e sangue misturado (gasoso e arterial, com três cavidades no coração) tinham mais sucesso. “O ambiente seleciona o que é apto para aquele ambiente”, comenta.

Ou seja, além de identificar as concentrações químicas nas rochas, descrever as espécies de fauna e flora dos períodos também é importante para relacionar como eram os organismos que pareciam sobreviver às condições ambientais daquela época.

É por isso que o Laboratório de Paleontologia da Urca está focado em criar a base da cadeia alimentar do Cretáceo caririense, a partir das plantas fósseis descritas na região. O intuito é saber como a biota reagia e respondia ao clima extremo. “Você tem que pegar o nicho de maior número de espécies possíveis para fazer esse cruzamento de dados”, orienta Álamo.

Os pesquisadores da Urca também têm participado de diversas outras pesquisas que dão nova perspectiva sobre o paleoclima do mundo. Liderada pela paleontóloga Flaviana Lima, atualmente professora da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), com participação do paleontólogo Renan Bantim, curador do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens (MPPCN) e Álamo Saraiva, um estudo inédito descreveu um incêndio na Antártica há há 75 milhões de anos.

Diferente do hemisfério norte, o sul tem menos estudos sobre incêndios florestais dentro da pandemia. Como há 73 milhões de anos o Brasil e a Antártica estavam unidos, os achados no continente congelado dizem muito sobre as dinâmicas do hemisfério sul.

Paleoarte de reconstrução da Antártica no Cretáceo superior, durante o incêndio florestal. Na imagem, o incêndio foi provocado por atividade vulcânica.(Foto: Maurílio Oliveira)
Foto: Maurílio Oliveira Paleoarte de reconstrução da Antártica no Cretáceo superior, durante o incêndio florestal. Na imagem, o incêndio foi provocado por atividade vulcânica.

“Para o clima, tudo é muito relacionado com a ecologia. Desde que você entenda as dinâmicas, você consegue calibrar as ferramentas (para analisar o paleoclima)”, explica a bióloga Beatriz Ramos, mestranda do Laboratório de Radioecologia e Mudanças Globais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Laramg/Uerj). Essas ferramentas são chamadas de proxys e vão variar de acordo com os contextos estudados. Em geral, envolvem a análise de concentração química em minerais, ou o estudo de outros indicativos ambientais, como pólen, presença de conchas, corais e sampaquis.

Por exemplo, enquanto o hemisfério norte têm ferramentas bem calibradas para definir se os climas eram “frios” ou “quentes”, os trópicos identificam melhor o “úmido” e “seco”. Nada impede o Brasil de criar novas ferramentas para, de fato, deduzir o quão frio e quente o território era em diferentes momentos.

A Antártica já foi coberta por florestas no Cretáceo, antes de virar um deserto gelado(Foto: ravas51 (flickr: https://www.flickr.com/people/38007185@N00). Imagem sob licença Creative Comons (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0/))
Foto: ravas51 (flickr: https://www.flickr.com/people/38007185@N00). Imagem sob licença Creative Comons (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0/) A Antártica já foi coberta por florestas no Cretáceo, antes de virar um deserto gelado

Aliás, os estudos para desenvolver esse proxy já estão acontecendo e devem usar um bichinho bem conhecido do País: o mosquito. Essa é a pesquisa de mestrado de Beatriz, que procura associar o aumento de temperatura com o aumento da população de mosquitos.

A ideia surgiu quando o orientador dela, Heitor Evangelista, foi surpreendido pela presença de mosquitos na Rússia. “Nossa, quanto mosquito, né? Não imaginaria, aqui é super frio”, comentou Heitor com o guia que o acompanhava. Ao que o guia respondeu: “Nos últimos anos tem aumentado muito porque está muito quente.”

“Aí o Heitor ficou meio ‘opa, isso é algo a ser investigado’. Algumas pesquisas estão apontando que o Aedes aegypti está migrando para locais mais temperados”, relata Beatriz. A partir de agora, ela irá investigar se é possível relacionar esses dois fatores e, quem sabe, criar um novo proxy para o Brasil.

Essas relações importam para entendermos os impactos de uma possível migração de insetos. Em geral, há duas opiniões envolvendo calor e artrópodes: alguns entendem que o aumento da temperatura está levando à extinção dos artrópodes, enquanto outros defendem que as espécies na verdade migram em busca de conforto térmico.

“Eu acho que é um pouco dos dois. Acho que existem espécies que conseguem migrar e outras que não, e aí essas vão se extinguindo”, opina a bióloga. “E qual é o maior problema disso? É que vai ter troca de espécies, vai ter uma maior diversidade de espécies espalhadas no mundo, consequentemente de insetos, consequentemente de mosquitos e consequentemente de doenças tropicais”.

 

Observação: clima é diferente de tempo. O tempo é um estado momentâneo das condições atmosféricas, enquanto o clima é muito mais duradouro. Ambos vão compartilhar elementos como temperatura, umidade do ar, radiação solar, precipitação e ventos, mas enquanto o tempo é uma descrição de momentos específicos, o clima é a representação da “média” desses tempos no decorrer de muitos anos.

 



O capítulo que falta no IPCC

Se hoje somos capazes de criar cenários climáticos futuros, pontuando como o mundo será se a temperatura global aumentar em 1,5ºC a 5ºC, é por causa da paleoclimatologia. Praticamente todos os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) estão embasados na área, apesar de não existir um capítulo específico para a temática.

Ainda que não seja um problema, a bióloga Beatriz considera que a existência de um capítulo para a paleoclimatologia no IPCC ajudaria a “temperar” o conteúdo e abrir “margem para mais discussões do tipo”. “Por exemplo, tem muito negacionista que usa a paleoclimatologia como argumento”, alerta a pesquisadora.

Ao distorcer dados da paleoclimatologia, os negacionistas indicam que o planeta naturalmente passa por mudanças climáticas e que o aquecimento global é uma mentira. E apesar de a variação de clima entre as eras ser natural, o aceleramento delas e o fato de os humanos serem os responsáveis por essa rapidez não o são.

“Então, ter um capítulo de paleoclima no IPCC seria legal para pelo menos convencer quem não é tão cabeça de alumínio quanto os outros. Seria interessante”, opina. No primeiro relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), o quarto capítulo fala especificamente sobre o cenário da paleoclimatologia brasileira.

Desde 1950, com a Revolução Industrial, o mundo enfrentou um crescente de anomalias de temperatura. Anomalias climáticas são uma flutuação extrema de algum elemento da série climatológica, saindo do padrão de variabilidade observado. Isso significa que são temperaturas muito fora do comum, cada vez mais extremas.

No gráfico abaixo, você pode ver as anomalias de temperatura desde 1880. A partir dos anos 60, mais ou menos, as anomalias passaram a crescer sem parar — em outubro de 2023, atingiu 1,9ºC.

 

Anomalias de temperatura mundial (1880 a 2023)

 

Com a paleoclimatologia, sabemos muito bem o que deve ocorrer no futuro nem tão distante assim. “Vou pegar o exemplo dos mares. A maioria dos corais tende a morrer se a gente tiver um aumento na Terra de 7ºC”, conduz Álamo. “Se os corais deixarem de existir, vai deixar de existir aqueles berçários, usados pelos seres marinhos para reproduzir e viver. Por isso, um grupo de peixes muito grande vai deixar de existir. Vai mudar completamente a dinâmica da vida na Terra.”

E qual será a consequência disso nos continentes? “Vai existir um aquecimento global que poderia chegar até 7 graus, em média, de aumento da temperatura da Terra. Toda uma faixa de vida morreria, e eu digo isso porque isso já aconteceu lá atrás de alguma forma”, conclui o paleontólogo.

Ainda que o sistema seja complexo, as pistas que o passado dá para o caminho que o carro da humanidade tem rumado são claras: extinção. O objetivo, portanto, é fazer diferente para garantir resultados menos drásticos. “Você está vendo que é, mais ou menos, um jogo de xadrez. São um conjunto de possibilidades que você tem que ter o máximo de informação possível (para enfrentar).”

O que está em jogo é a sobrevivência não só da espécie humana, mas de todos os organismos terrestres. O planeta continuará existindo, mas o mundo como o conhecemos, com as características perfeitas para o surgimento e permanência da espécie humana, será totalmente desafiador. Algumas espécies sobreviverão, outras não. Em qual grupo estaremos nós? E em que condições?

Peixes mortos com lixo marinho, na praia de Visakhapatnam (Índia).(Foto: Srikanth Mannepuri / Ocean Image Bank)
Foto: Srikanth Mannepuri / Ocean Image Bank Peixes mortos com lixo marinho, na praia de Visakhapatnam (Índia).

Apenas com a paleoclimatologia podem-se responder essas perguntas, e para isso a pesquisa demanda investimento e infraestrutura. Estudos de ciência básica, aquela que não tem aplicação prática imediata, são importantíssimos nesse processo.

Afinal, a descrição de espécies de fósseis, o estudo de mosquitos e temperatura, a compreensão sobre minérios e compostos químicos são todos utilizados para compor a área. Assim como a arqueologia e o estudo de grupos humanos do passado: constantemente os arqueólogos perguntam-se como nossos antepassados viviam e se relacionavam com o mundo, por quê eles migravam e o que os fazia permanecer em espaços específicos. Muitas vezes, o clima é a resposta.

Tudo é regido pelo clima. Ignorá-lo nunca será a melhor opção.

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