A beleza dos oceanos já serviu de inspiração para músicos, pintores e escritores. Para alguns, o mar é sinônimo de férias e de diversão. Para outros, é fonte de trabalho e sobrevivência. De certa forma, faz parte da identidade brasileira. Nos últimos meses, no entanto, as águas do litoral do Ceará e de outros estados do Nordeste se tornaram alvo de preocupação por causa de anomalias térmicas. Em outras palavras, o oceano está esquentando.
De acordo com Marcelo Soares, professor do Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da Universidade Federal do Ceará (UFC), a temperatura do oceano no Ceará costuma ficar entre 26 graus Celsius (°C) e 29 °C, a depender do período do ano. Mas, desde janeiro de 2024, ela está batendo nos 30 °C.
Anomalias climáticas
O também professor do Labomar, Carlos Teixeira, explica que as temperaturas estão atingindo marcas históricas. "Se a gente pegar a média global, de todas as regiões do planeta, é o ano mais quente [do oceano] desde o começo das medições, em 1981", destaca.
"A região do Ceará, vai ter de 0,7 °C até 1 °C acima da média. Se você olhar para o globo inteiro, principalmente na região com 60° de latitude, está muito quente. Tá tudo muito quente.”
A razão, todos já escutaram. Alexandre Costa, professor do mestrado em climatologia da Universidade Estadual do Ceará (Uece), afirma que o aumento da temperatura dos mares acontece, principalmente, por causa do aquecimento global, potencializado pelos altos índices de emissão de gás carbônico (CO2) na atmosfera.
"Hoje, não há sombra de dúvidas, todo o sistema terrestre está superaquecido em função do excesso de gases de efeito estufa na atmosfera", explica.
Em abril de 2024, 426,57 Partes Por Milhão (ppm) de CO2 foram emitidos, segundo registros do Observatório de Mauna Loa, da agência estadunidense National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), localizado no Havaí. O número marca um recorde de emissões na era humana. No mesmo período do ano passado, 423,37 ppm foram emitidos. Os números só crescem.
Emissão de gás carbônico em seis décadas e meia
O professor destaca que outros fatores, como o El Niño, também influenciam o aumento da temperatura do oceano, mas a situação ocorre, principalmente, por conta do aquecimento global. "Vale ressaltar que são os oceanos quentes que fornecem vapor d'água para as tempestades. A gente deveria, inclusive, estar ligando [essa situação] com a tragédia do Rio Grande do Sul."
O oceano aquecido, conforme Alexandre, funciona parecido com uma banheira quente, bastante vapor é gerado. "Esse vapor na atmosfera vai se converter em nuvens e tempestades. Ou seja, fenômenos como ciclones tropicais, furacões e tufões, [por exemplo], passam a ser alimentados por uma fonte de vapor maior do que antes. Então, eles se tornam mais imponentes."
Outro impacto do aquecimento dos mares é o processo de branqueamento dos corais. No momento, o litoral do Ceará e de outros estados do Nordeste estão em alerta de nível 4, quando existe o risco severo de mortalidade de múltiplas espécies de mais de 50% dos corais, com trechos em alerta de nível 5, quando o risco de mortalidade passa dos 80%. Os dados são da plataforma Coral Reef Watch, da NOAA, que monitora o oceano desde 1985.
“O alerta nível 4 quer dizer que nós estamos entre 16 e 20 semanas com calor acima da média. Isso é um recorde histórico. Desde janeiro a temperatura está muito acima da média, então a gente está tendo um evento de branqueamento em massa. Não é só aqui [no Ceará], no Rio Grande do Norte, em Fernando de Noronha etc.”, explica Marcelo Soares, o professor do Labomar.
O branqueamento não necessariamente significa a morte dos corais. Eles podem se recuperar, mas existem ressalvas. "O último evento [de branqueamento em massa] foi em 2020 e agora, em 2024, a gente está vendo um evento ainda maior", destaca Marcelo.
"É como se fosse um mega incêndio debaixo d'água. Eles aconteciam uma vez a cada dez anos. Mas, a gente já tá vendo um segundo em cinco anos. Não há tempo para o coral, que é um organismo como a gente, se recuperar do estresse. Ele pode se recuperar? Pode, se a temperatura baixar", continua.
Conforme Sérgio Rossi, também professor do Labomar, o coral é a árvore do mar. Eles funcionam como engenheiros do ecossistema. "Pense em uma cidade. Você tem casas, prédios e estruturas que tornam possível a vida de outros organismos. Os corais fazem possível a vida de peixes, lagostas, caranguejos, lulas etc."
Além de tornar a vida no oceano possível, os corais também são capazes de imobilizar carbono e purificar as águas. “Eles fazem parte dos ciclos biogeoquímicos. Se os corais desaparecem, os ecossistemas desaparecem. Vai haver menos peixes, menos lagostas etc. Os sistemas se simplificam”, pontua o professor.
O branqueamento também gera consequências socioeconômicas. Uma delas é na questão do turismo. As cores dos recifes de corais, muitas vezes, são um chamariz para as visitações. A situação, além disso, compromete o sustento e a segurança alimentar de pescadores e de cadeias econômicas baseadas na pesca.
Diante da situação, Marcelo alerta que o aquecimento global é claro, além de ser consenso entre os pesquisadores. “Se a gente não fizer nada, todo ano vai ter branqueamento em massa de corais, e o ecossistema vai ser extinto em aproximadamente 40 anos.”
Antonio Leonizio Ribeiro, 69, mais conhecido na Praia do Mucuripe, em Fortaleza, como ‘Antonio Banqueiro’, pesca desde a infância. Hoje, pela idade, ele não atua de forma muito física na atividade. “Faço algumas viagens alternadas devido ao esforço físico, mas sempre vou.”
Parte do que ele pesca é destinado para subsistência, consumo próprio, e a outra parte é vendida. “A gente vende pra atravessador, pra machante, pra quem vem comprar um quilo (kg) de peixe. Esse é o dia a dia do pescador.”
“Tem [tipos de] pescas que são prejudiciais [às predatórias], mas tem outras que não são prejudiciais e ajudam no cotidiano desses trabalhadores”, continua Antonio. “É a natureza. Eu não entendo muito bem dela, mas convivo e sobrevivo com ela, sem agredi-lá.”
José Milton das Chagas Pereira, 56, é de Camocim e se mudou para Fortaleza recentemente. Ele também exerce a atividade desde a infância. Isso é algo comum entre pescadores, muitos herdaram a profissão dos pais. “Meu pai pescava e tenho outros seis irmãos que também são pescadores, também trabalham no mar.”
Há quase 40 anos no mar, ele afirma que já é perceptível a mudança da quantidade de peixes nas águas. “Agora tem muito pouco peixe, [em comparação] com 30, 20, dez anos atrás. O ser humano destroi a matéria que Deus deixou.”
Raimundo Antonio Santos de Paula, 73, chegou ao Mucuripe em 1954. “Conheço essa praia como a palma da minha mão. Eu era dono de cinco jangadas, mas hoje só tenho uma. Com a idade, a gente vai descansando.”
A jangada de Raimundo passa de três a quatro dias no mar e, quando volta para a areia, os pescados são distribuídos entre os pescadores que participaram da ‘expedição’. Alguns fazem consumo próprio, outros vendem ou fazem os dois.
Todos os pesquisadores citados dizem a mesma coisa: é necessário o fim da dependência nos combustíveis fósseis. "A gente precisa zerar o desmatamento, abandonar os combustíveis fósseis como fonte de energia, senão a gente não vai ter futuro", destaca Alexandre Costa.
O professor ressalta que, apesar de atitudes individuais serem importantes, as grandes indústrias são as principais responsáveis pela situação e precisam ser responsabilizadas. "Eu faço todo o possível: tenho um automóvel pequeno, que só roda com etanol. Abdiquei de praticamente toda viagem aérea desnecessária etc.”
“Não acho que (atitudes do tipo) sejam desprezíveis. Acho importante mostrar que dá para viver de outra forma. Mas, não é isso que vai resolver o problema", adiciona.
De acordo o estudo "Carbon Majors", da Climate Accountability Institute, um grupo de 20 empresas é responsável por cerca de 35% das emissões dos gases causadores do efeito estufa em todo o mundo desde 1965.
Nos dados de 2022, divulgados no dia 4 de abril de 2024, a brasileira Petrobras aparece na posição de número 42 entre os maiores poluentes do ano. Se somadas as emissões entre 1965 e 2018, a empresa fica na 20° posição.
O gráfico abaixo está mostrando a evolução da quantidade de poluição emitida especificamente pela Petrobras ao longo das últimas décadas. A partir do filtro abaixo, porém, é possível verificar também o nível de poluentes emitidos por outras empresas ao redor do mundo.
Em nota, a Petrobras afirma que “o levantamento da Carbon Major traz somente informações sobre o porte e tamanho das empresas, sem levar em conta a eficiência em produzir e entregar energia”.
Eles citam que, em 2023, registraram os melhores resultados históricos em emissão de gases de efeito estufa. “Entre 2015 e 2023, a companhia reduziu as emissões operacionais de 78 milhões de toneladas de CO2 para 46 milhões de toneladas de CO2. Importante destacar que as emissões de metano foram reduzidas em 70% nesse período.”
A empresa, além disso, tem como compromisso neutralizar o lançamento de gases de efeito estufa até 2050. Estão previstos US$ 11,5 bilhões para ações nessa direção. “Acreditamos que conciliar o foco em petróleo e gás com a diversificação de portfólio em negócios de baixo carbono é o caminho mais eficaz e justo para a transição energética. Nesse sentido, já somos responsáveis por 20% da reinjeção de CO2 no mundo.”
O POVO entrou em contato com a Superintendência Estadual do Meio Ambiente do Ceará (Semace) para saber se existe uma lista com as empresas que mais emitem CO2 no Estado. O monitoramento, no entanto, não é feito pela pasta.
Também em nota, a Semace afirma que “todas as empresas [do Ceará] que possuem alguma emissão atmosférica, em sua Licença de Operação, têm como condicionante a apresentação do automonitoramento de emissões atmosféricas ou da qualidade do ar”.
Uma possível solução para a diminuição da dependência em combustíveis fósseis é a transição energética. Como o próprio nome aponta, o processo se refere a mudança do sistema energético, com o objetivo de reduzir a dependência de fontes de energia não renováveis, como o petróleo, o carvão e o gás natural.
Gabriela Ramires, bióloga, coordenadora de políticas públicas e advocacy do Projeto Aves Migratórias da Aquasis, ressalta que a transição é importante, mas deve acontecer de forma cuidadosa.
“A gente vê ecossistemas hídricos e populações ribeirinhas afetadas com a matriz hidrelétrica, populações costeiras tradicionais afetadas pela instalação de [parques] eólicos. Se a gente não tomar cuidado, vai ter populações costeiras muito afetadas pelas possíveis instalações desses [parques] e também por usinas solares nos interiores.”
“Estamos no ponto em que realmente precisamos dessa mudança na matriz energética, mas [essa transição] tem que ser feita com responsabilidade, para que efeitos negativos não sejam causados”, continua a pesquisadora.