O ano era 1877 quando o compositor russo Piotr Ilitch Tchaikovsky recebeu uma carta que mudaria para sempre o rumo de sua vida. A remetente era Nadezhda von Meck, uma rica viúva russa que se autodeclarava uma “ardente admiradora”.
Encantada pela música de Piotr, ela não somente encomendou composições, como passou a sustentá-lo com uma generosa pensão anual de 6 mil rublos — o equivalente a cerca de R$ 360 nos valores atuais, mas uma quantia extremamente generosa à época.
O apoio permitiu que Tchaikovsky abandonasse outras ocupações e se dedicasse exclusivamente à criação musical. Havia, porém, uma única condição inegociável e paradoxal frente ao afeto que surgiria entre os dois: jamais poderiam se encontrar pessoalmente.
Descubra a história de Nadezhda e de Tchaikovsky registrada no livro “The Tchaikovsky Papers: Unlocking the Family Archive” (Os Documentos de Tchaikovsky: Desvendando o Arquivo da Família, em tradução livre para o português), lançado em 2018 nos Estados Unidos e no Reino Unido; e no dossiê da Orquestra Sinfônica da Califórnia.
Nadezhda von Meck era viúva de um magnata do setor ferroviário, cuja fortuna foi construída com investimentos na expansão do modal de transporte na Rússia. Após a morte repentina do marido, em 1876, ela assumiu, aos 45 anos, a gestão da herança e a criação dos filhos.
Dos 18 que teve, somente 11 sobreviveram. Reclusa por escolha, Nadezhda se afastou da vida social, a ponto de sequer comparecer aos casamentos dos próprios filhos. Suas ações nos "bastidores", contudo, seriam responsáveis pelo surgimento de talentos musicais inesquecíveis para o mundo.
A música era sua principal forma de contato com todo ambiente exterior à sua casa. Estudava piano desde a infância e, enquanto o marido era vivo, o casal apoiava jovens músicos, contratando-os como professores particulares.
Enquanto viúva, ela intensificou esse envolvimento, patrocinando artistas e instituições culturais, como a Sociedade Musical Russa, que frequentava discretamente, longe dos olhares da elite da época.
Assumiu a gestão dos negócios do marido após seu falecimento, e lutou contra o arquétipo machista da época que por anos a perseguiu com imposições sociais rigososas e contrárias aos ideais de liberdade, criatividade e originalidade que tanto defendeu por meio de seu investimento em jovens artistas.
Seu patrocínio a músicos e institutos musicais também era uma forma de concretizar um desejo pessoal impossível para ela naquela época: viver enquanto musicista profissional.
Foi nesse “mundo” paralelo de solitude, que surgiu sua relação com Tchaikovsky. Impressionada com o talento do compositor, ela decidiu financiá-lo para que pudesse se concentrar exclusivamente em sua arte — um gesto que transformaria a trajetória do compositor.
Entre cartas, mesadas e confissões ardentes de paixões, Nadezhda von Meck foi a grande patrona que, por décadas, investiu e acreditou no talento de Tchaikovsky muito antes de ele alcançar o sucesso.
Sem ela, a história moderna da música talvez jamais conhecesse a obra de Tchaikovsky, tido atualmente como um dos mais brilhantes compositores da história. Sem Nadezhda von Meck, o mundo talvez jamais tivesse conhecido o hoje clássico ballet do Lago dos Cisnes.
Durante 14 anos, os dois trocaram mais de 1.200 cartas — em média, quase duas por semana. A correspondência era profunda e íntima, revelando aspectos emocionais e criativos da vida de Tchaikovsky.
Nadezhda, sempre serena e reclusa, pediu que as cartas fossem destruídas, mas o compositor ignorou parte da recomendação e preservou várias delas, especialmente os envios entre 1876 e 1878. Estima-se que o conteúdo dessa troca de correspondências daria um livro de mais de 500 páginas.
A relação, ainda que limitada ao papel, era intensa. Tchaikovsky encontrava em Nadezhda não somente uma patrocinadora, mas uma confidente. Reconhecia nela uma figura de apoio incondicional, enquanto lidava com sua própria insegurança e o desconforto diante da sociedade.
A exigência de jamais se encontrarem — mesmo quando ficavam hospedados na mesma propriedade ou cruzando os mesmos salões em raros eventos sociais — revela o quanto a viúva zelava pela distância. Tchaikovsky, por sua vez, aceitava essa regra como parte do pacto invisível que sustentava uma das conexões mais singulares de sua vida.
Nos últimos anos que precederam sua morte, Tchaikovsky enfrentou uma intensa crise criativa. Em meados de 1888, enquanto compunha sua Quinta Sinfonia, chegou a duvidar de sua própria aptidão como compositor, desabafando essa insegurança em uma das cartas enviadas a Nadezhda von Meck.
No entanto, a situação começou a melhorar em agosto daquele mesmo ano. Em uma correspondência enviada à viúva, o músico escreveu com alívio: "Agora estou trabalhando com muito sucesso, e a maior parte da sinfonia já está pontuada."
A comunicação entre os dois, contudo, foi interrompida abruptamente em 1890. Nadezhda von Meck informou a Tchaikovsky que havia falido e, por isso, precisaria suspender a ajuda financeira destinada à sua arte. No entanto, essa alegação não era verdadeira.
O real motivo do fim dessa relação nunca foi completamente esclarecido, mas há indícios de que os filhos de Nadezhda possam tê-la pressionado a romper o vínculo com o compositor.
Embora haja diversas cartas que revelam seus desejos afetivos e sexuais por outros homens, a sexualidade de Piotr Ilitch Tchaikovsky ainda é alvo de polêmica entre pesquisadores históricos.
Um dos fatores que contribuíram para isso foi a censura russa. Muitas de suas correspondências foram censuradas por trazer um conteúdo “explícito” sobre sua homossexualidade.
Em uma dessas cartas, Tchaikovsky escreveu para Nadezhda sobre um jovem por quem ele se dizia apaixonado: "Meu Deus, que criatura angelical... como anseio ser seu escravo, seu brinquedo, sua propriedade!"
Embora a homossexualidade de Tchaikovsky seja amplamente reconhecida no Ocidente, o tema ainda é alvo de debates públicos acalorados, especialmente na Rússia.
Em outra carta, o compositor relata o encontro com outros homem, que descreveu como um "jovem de beleza estonteante”, com quem encontrou e teve uma relação casual.
"Depois do nosso passeio, ofereci-lhe dinheiro, que foi recusado. Ele faz isso por amor à arte e adora homens com barba".
O trecho faz parte do livro “The Tchaikovsky Papers: Unlocking the Family Archive” (Os Documentos de Tchaikovsky: Desvendando o Arquivo da Família, em tradução livre para o português), lançado em 2018 nos Estados Unidos e no Reino Unido.
A publicação foi estruturada pela editora e pesquisadora Marina Kostalevsky, reunindo cartas, documentos e registros íntimos do compositor.
Embora deixasse sua orientação sexual clara nas trocas de cartas com Nadezhda, Tchaikovsky chegou a pedir a mão de duas mulheres em casamento ao longo da vida.
A primeira foi a soprano Désirée Artôt, que despertou seu interesse frente sua dedicação pelo canto. No entanto, o relacionamento terminou antes mesmo de começar.
Pouco após aceitar as investidas românticas e a proposta de casamento de Tchaikovsky, Artôt anunciou publicamente seu casamento com um barítono espanhol, surpreendendo o compositor, que não voltou a procurar a mulher.
Anos depois, Antonina Miliukova se tornaria a segunda mulher que Tchaikovsky pediria em casamento. Nesse caso, o casamento foi visto pela sociedade da época como uma "solução conveniente" para Tchaikovsky, já que rumores sobre sua homossexualidade começavam a circular — algo que, à época, comprometia sua reputação e carreira.
Os dois se conheceram após Antonina lhe enviar uma carta declarando seu amor. Eles chegaram a se casar em 1877, mas o matrimônio não vingou, pelo contrário. O compositor tentou por diversas vezes ao longo da vida o divórcio, que, por fim, não ocorreu.
Diante desse cenário, O POVO entrou em contato com a professora universitária e pesquisadora em gênero e sexualidade na música na Universidade Federal do Ceará (UFC, campus Sobral), Dra. Yanaêh Mota, para refletir sobre como a orientação sexual de Tchaikovsky é tratada no meio acadêmico e musical. Conforme a pesquisadora, o tema ainda é incômodo para muitas instituições.
“Em minha experiência, como professora e pesquisadora de gênero e sexualidade na música, observo que a sexualidade é, em geral, um tabu na área. Infelizmente, ainda não debatemos amplamente sobre questões relacionadas a gênero e sexualidade nos cursos superiores de música”, relata.
A pesquisadora ressalta que o silenciamento da sexualidade de compositores, como Tchaikovsky, limita nossa compreensão da arte que produzem:
“Não há amplo reconhecimento da homossexualidade desse compositor (e de outros), justamente, porque isso é colocado como 'não importante'. O que vejo acontecer é a evitação do assunto", explica. "Ora, questiono: como pode algo tão profundo quanto a sexualidade não importar na análise de obra se compomos/tocamos/ensinamos música partindo do sujeito?”
Para a pesquisadora, a resistência diz mais sobre o meio do que sobre o artista: “Compositores homens como Tchaikovsky, Britten, Barber, Chopin, Lully, Copland, Mussorgsky, para citar alguns, aparecem em disciplinas de História da Música, por exemplo, mas sem evidenciar a ligação entre desenvolvimento artístico e sexualidade. Isso me parece grave, uma vez que, lembremos, alguns países consideravam a sexualidade um crime (e alguns ainda consideram)."
Ao analisar especificamente o contexto de Tchaikovsky na Rússia, a professora Yanaêh destaca a grande repressão do país em relação às questões de gênero e de sexualidade. "É importante pontuar que os nomes e trajetórias de mulheres na música ainda não são amplamente conhecidas, o que nos indica uma profunda ausência de reconhecimento de suas obras e biografias", complementa.
Sem mais detalhes da vida pessoal de Tchaikovsky frente ao fim da troca de cartas com Nadezhda, o músico morreu em 1893, aos 53 anos de idade e com uma carreira de sucesso internacional.
A morte ocorreu três anos depois de romper o vínculo com sua patrona. Seja por destino, seja por coincidência, Nadezhda morreria no mesmo ano em que Tchaikovsky, apenas três meses depois do compositor.
Na manhã de 6 de novembro de 1893, jornais da época noticiaram a morte de Piotr Ilitch Tchaikovsky, oficialmente atribuída à cólera. O legado do compositor russo, porém, segue vivo, atravessando gerações e mantendo-se presente nos palcos e corações ao redor do mundo.