
Nas ruas estreitas e nas grandes avenidas, elas vêm ganhando espaço e tornando-se perceptíveis a todos. Pequenas, individuais ou compartilhadas, motorizadas ou não, você certamente já se deparou com elas por aí, as bicicletas.
A invenção secular da humanidade está se tornando a melhor amiga do homem moderno diante de cidades cada vez mais congestionadas. Econômicas e ligeiras, elas estão se repopularizando junto de outros veículos igualmente leves e pequenos, como patinetes e scooters.
É a micromobilidade se apresentando de forma espontânea como resposta mais eficiente e sustentável para a crise de locomoção urbana. Para os governos, uma oportunidade igualmente benéfica: a chance de garantir cidades mais verdes e cicloviárias.
Na prática urbana, no entanto, essa revolução enfrenta uma disputa com favoritos. Em cidades construídas e pensadas para automóveis, utilizar pequenos veículos é um desafio de segurança que transpassa a demarcação de espaços.
É nesse cenário que Fortaleza, apinhada de carros e motos, vive uma disputa silenciosa: quem domina a micromobilidade e seus espaços de locomoção?

Para Diego Freire Martins, arquiteto e urbanista e doutorando na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com pesquisas em mobilidade urbana, especialmente em transporte público e micromobilidade no Brasil, apesar de ser um conceito relativamente novo em termos de nomenclatura, a micromobilidade já vem sendo incorporada às discussões sobre mobilidade contemporânea.
Ela tem sido entendida e regulamentada a partir de legislações do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), que vêm avançando, ainda lentamente, na definição e no incentivo a esses modos de deslocamento.
O conceito abrange veículos leves e compactos, considerados fundamentais para pequenos percursos urbanos. Diego explica que “esses trajetos curtos são frequentemente chamados na área de 'deslocamento porta a porta' ou 'deslocamento da primeira milha', sendo o percurso realizado para chegar, por exemplo, a um ônibus ou trem”.
No contexto brasileiro, a bicicleta permanece como o veículo de micromobilidade mais comum. Contudo, a categoria inclui uma série de outros equipamentos que vêm ganhando espaço, como patinetes, patinetes elétricos e scooters.
Tradicionalmente, esses veículos são movidos pela força humana, seja pedalando ou impulsionando, mas, nos últimos anos, houve um avanço expressivo da eletrificação. A bicicleta elétrica, por exemplo, já está amplamente difundida no país, sobretudo nas capitais.
Conforme dados da Associação Brasileira do Setor de Bicicletas, entre 2016 e 2024, o número de bicicletas elétricas em circulação saltou de 7.600 para 284 mil. O mercado de bicicletas elétricas — excluindo os modelos
Na Capital cearense, a popularização desses veículos abriu espaço para um novo nicho no comércio. Lojas no estilo “Shopee”, que vendem mercadorias importadas a baixo custo, passaram a apostar na oferta em massa de scooters e outros equipamentos elétricos leves.
Enfileirados nas entradas dos estabelecimentos, esses veículos são vendidos entre R$ 5 mil e R$ 12 mil como alternativas consideradas mais econômicas, ágeis no trânsito e menos dependentes dos ônibus lotados ou dos altos preços da gasolina.
A expansão do mercado e o fortalecimento de políticas de mobilidade sustentável foram decisivos para consolidar o uso do termo “micromobilidade”. Original do inglês, ele surge como referência ao bikesharing (bicicletas compartilhadas) e ao scooter sharing (patinetes compartilhados), serviços comuns em pacotes de mobilidade oferecidos, principalmente, nos Estados Unidos.
Também no país norte-americano e na Europa, começam a surgir, em meados dos anos 2010, as primeiras pesquisas voltadas a compreender a popularização de meios de transporte alternativos aos carros e o papel dos sistemas de compartilhamento como incentivadores da micromobilidade.
Em Fortaleza, a primeira iniciativa de veículos leves compartilhados surgiu em 2015 a partir de uma parceria entre a Prefeitura e as empresas Mobilidade e Serttel. O sistema Bicicletar contabiliza, até novembro de 2025, mais de 8 milhões de viagens realizadas.
Esse avanço acompanha modelos semelhantes que chegaram ao Brasil pela primeira vez em 2008, com o Samba — hoje Bike Rio — no Rio de Janeiro.
O modelo de mobilidade compartilhada segue padrões internacionais que refletem o aumento do uso desses meios, impulsionados pela busca por alternativas de transporte com menor impacto ambiental e menores emissões de gases poluentes.
Para Diego, no entanto, a realidade do uso desse estilo de locomoção no Brasil está muito mais relacionada com fatores econômicos, já que os incentivos para transporte verde ainda seguem mínimos na maior parte do País.

Contrariando a percepção de que a micromobilidade é um fenômeno recente, Diego aponta que o crescimento observado hoje é, na verdade, um exercício de nomeação. O deslocamento por bicicleta já é amplamente praticado no Brasil há muitos anos, especialmente a partir dos anos 2000.
“É crucial notar o recorte socioeconômico neste cenário: as populações de baixa renda são historicamente as que mais se deslocam a pé e de bicicleta”, afirma. Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) confirmam que são justamente os mais pobres que utilizam esses meios, devido ao custo do transporte coletivo pesar significativamente no orçamento familiar.
Conforme o Censo de 2022, 4,4 milhões de brasileiros vão de bicicleta para o trabalho todos os dias. Apesar do montante significativo, isso representa apenas 6,2% dos trabalhadores, enquanto o carro (32,3%) e o ônibus (21,4%) ainda lideram, seguidos por quem vai a pé (17,8%).
O IBGE também mostra que, à medida que aumenta o nível de instrução entre a população ocupada, cresce o uso de automóveis ou veículos equivalentes. Em contrapartida, o deslocamento a pé ou por bicicleta perde participação entre aqueles com escolaridade mais elevada.
Fortaleza é a cidade com mais ciclistas nas ruas
“Essas populações, às vezes, percorrem quilômetros e mais quilômetros. Estamos falando de trajetos de 4 km ou 5 km que poderiam ser feitos por um transporte de longo alcance — ônibus, metrô, trem, VLT — e que acabam sendo realizados a pé ou de bicicleta porque é mais barato”, comenta Diego.
Embora o uso seja histórico, o interesse recente do poder público e do mercado de mobilidade está relacionado a diversos fatores, entre eles a busca por deslocamentos mais sustentáveis. O setor tem crescido rapidamente, impulsionado sobretudo pela eletrificação.
Além do incentivo ambiental, o próprio contexto urbano brasileiro, marcado por engarrafamentos e congestionamentos, estimula a adoção desses modais alternativos.
A falta de investimento e de melhorias no transporte coletivo, especialmente ônibus e metrô, cria uma lacuna. Diante de um sistema de massa defasado, as pessoas procuram soluções mais eficientes.
Fabrício Alves, 42, publicitário, tem uma trajetória marcada pelo uso da micromobilidade. Ele conta que começou a utilizar bicicleta como meio de locomoção ainda na faculdade, em 2003, como alternativa para evitar os ônibus lotados da Capital.
Atualmente, o patinete é seu meio de transporte mais utilizado de segunda a sexta-feira, tanto para ir ao trabalho quanto para pequenas viagens relacionadas à rotina pessoal. A distância média de seu deslocamento mais comum é de 3,5 km, e ele afirma ser movido pela economia, praticidade e rapidez que o patinete oferece em comparação a outras opções de transporte.
Apesar dos benefícios que observa no dia a dia, Fabrício acredita que a cidade ainda precisa expandir a malha cicloviária. Ele destaca a necessidade de implementar faixas exclusivas em avenidas de grande movimento, como a Avenida Dom Manuel, conectando-a à Avenida Aguanambi, que, segundo ele, possui “uma das melhores estruturas da cidade”.

A verdadeira disputa da micromobilidade reside no planejamento urbano. A Política Nacional de Mobilidade Urbana, lei que orienta todas as ações sobre o tema no Brasil, estabelece que a responsabilidade pelo planejamento da mobilidade é sobretudo do município, por ser quem conhece de perto o funcionamento da cidade.
A legislação também define uma hierarquia de prioridades: os deslocamentos ativos devem estar em primeiro lugar — ou seja, o município deve planejar a cidade para pedestres e ciclistas. Em seguida vem o transporte coletivo e, somente depois, o veículo individual motorizado.
Na prática, porém, a realidade brasileira é inversa ao que está na lei. As cidades priorizam consistentemente o carro, ampliando avenidas e construindo mais vias como resposta aos congestionamentos.
Para Mário Azevedo, professor do Departamento de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Ceará (UFC), essa preferência histórica pelo transporte motorizado individual gera uma constante necessidade de reordenamento urbano.
Embora a ampliação de uma avenida possa aliviar o trânsito inicialmente, no longo prazo ela incentiva ainda mais o uso do automóvel, resultando em novos congestionamentos, em um ciclo que se retroalimenta e segue sem solução definitiva. “É uma lógica que prioriza o veículo em vez da pessoa”, afirma.
Em contraste, diversos países têm feito exatamente o oposto do Brasil. Ao reduzir o espaço destinado aos carros, restringir o trânsito em determinadas áreas e investir em alternativas leves.
Cidades da Europa aceleraram a transição para um modelo de mobilidade mais sustentável. Em Barcelona, por exemplo, o plano de mobilidade urbana consolidou uma malha cicloviária que ultrapassa 200 quilômetros e vem sendo ampliada continuamente como forma de diminuir a participação do automóvel nas viagens diárias.
Paris segue caminho semelhante, com investimentos milionários em infraestrutura ciclável, ampliação de ciclovias protegidas e políticas que restringem a circulação de carros em regiões centrais.
Copenhague e Amsterdã, referências globais, mostram há décadas que priorizar a mobilidade ativa — por meio de redes contínuas e seguras de ciclovias — é capaz de transformar a paisagem urbana e redefinir hábitos de deslocamento.
Em todas elas, a chave é a mesma: infraestrutura consistente, pensada para proteger e incentivar o usuário de modais leves.
É nesse contexto que a micromobilidade começa a se consolidar no cotidiano brasileiro — mesmo diante de desafios estruturais e culturais. Para compreender como esses modais se inserem na dinâmica de uma cidade como Fortaleza, a experiência individual dos usuários ajuda a revelar tanto o potencial quanto as barreiras desse tipo de transporte.
O publicitário Daniel Silverio, 34, é um desses usuários. Ele alterna no dia a dia entre ônibus, Uber, bicicleta e patinete elétrico, adaptando-se conforme a necessidade. Com a chegada dos patinetes compartilhados, voltou a pedalar com mais frequência e hoje utiliza ao menos uma vez por semana algum meio de micromobilidade para deslocamentos curtos — geralmente entre três e quatro quilômetros.
O fator econômico pesa na escolha, já que esses modais costumam ser mais competitivos do que carros de aplicativo. Mas não é só isso. Daniel descreve a experiência como uma combinação de liberdade, praticidade e uma dose de adrenalina: “É aquela sensação de aventura, de comandar um miniveículo, algo que torna o trajeto mais leve”.
Trabalhando no setor de energias renováveis, ele também enxerga na micromobilidade um componente ambiental importante. Os veículos elétricos, afirma, são aliados fundamentais em um cenário de transição energética e podem representar impactos positivos tanto para a sociedade quanto para o planeta.
Ainda assim, ressalva: a sensação de liberdade não elimina a necessidade de atenção redobrada. “Muitos motoristas e motociclistas ainda não têm 100% de respeito por quem usa as ciclofaixas”, diz.
A convivência nem sempre é harmônica, e a falta de consciência sobre o compartilhamento do espaço viário ainda provoca sustos, acidentes e uma constante sensação de vulnerabilidade.
Ele reconhece avanços, como o uso crescente de separadores físicos — pequenas colunas que isolam a ciclofaixa do trânsito de carros —, que tornam o percurso mais seguro. Mas afirma que a infraestrutura ainda está longe do ideal.
O que o motiva a continuar utilizando patinetes e bicicletas é a possibilidade de escolha: a micromobilidade, para ele, amplia as opções de deslocamento e permite decidir, a cada dia, o que faz mais sentido.
Daniel acredita que esse movimento é crescente e irreversível. Lembra que Fortaleza sempre teve forte presença de trabalhadores que usavam bicicleta no dia a dia, mas que esses usuários foram historicamente negligenciados.
A implantação de uma rede cicloviária extensa começou a mudar esse quadro, favorecendo não apenas quem já pedalava, mas também quem passou a adotar novos modais elétricos.
“As mudanças estão acontecendo rápido. Há cinco anos ninguém imaginaria esse cenário. Precisamos nos permitir conhecer novas possibilidades que sejam melhores para nós e para o planeta”, afirma.
Daniel pode ser o reflexo de que, apesar dos obstáculos, há disposição dos usuários para adotar novas formas de mobilidade — desde que a cidade ofereça condições seguras. Em todas as experiências internacionais bem-sucedidas, o ponto de virada foi justamente esse: investir de forma consistente em infraestrutura, garantindo conexões contínuas e proteção física nas vias.
Para Diego Freire Martins, arquiteto e urbanista e doutorando na UFRJ, é a partir desse tipo de planejamento, orientado pela prioridade às pessoas, como estabelece o Contran, que a micromobilidade deixa de ser alternativa e passa a ser parte estrutural da mobilidade urbana.
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