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6 crianças morreram vítimas de conflito de facções no Ceará
Reportagem

6 crianças morreram vítimas de conflito de facções no Ceará

Desde 2020, 15 crianças foram mortas no Estado. Dessas, ao menos seis foram mortas no meio do conflito entre grupos criminosos
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Maria Vitória Sousa, 2, morta por bala perdida em confronto de policiais e criminosos (Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Maria Vitória Sousa, 2, morta por bala perdida em confronto de policiais e criminosos

O conflito entre facções criminosas no Estado não poupa as crianças. Em 2020, 14 crianças entre 0 e 10 anos foram assassinadas no Ceará, conforme dados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). Seis dessas mortes tiveram como pano de fundo o conflito entre organizações criminosas — a motivação mais frequente para mortes de crianças no Estado, contra três casos de violência doméstica, conforme levantamento de O POVO. Os números podem ser maiores pois em alguns dos casos a motivação do crime não foi divulgada. Neste ano, o número de crianças mortas é menor, conforme a SSPDS: um caso foi registrado. 

Bebê de dois meses

O levantamento mostra que, na guerra entre facções, as crianças são ora vítimas colaterais de execuções ou de balas perdidas; ora são mortas deliberadamente como forma de provocar dor em outras pessoas, quase sempre, pai ou mãe. É o caso de Ana Dayla de Sousa Paiva, de apenas dois meses de idade, morta após crime ocorrido em março de 2020, no bairro Cidade 2000.

Conforme denúncia do Ministério Público Estadual (MPCE), o crime ocorreu após três homens invadirem a casa onde a família de Ana Dayla morava atrás de um homem. Como uma familiar da criança não informou o paradeiro, os criminosos a amarraram e passaram a esganar Ana Dayla na sua frente, com o intuito de obter a informação. Como não conseguiram, o trio arremessou o bebê na parede, provocando sua morte. A vítima chegou a ser encaminhada a um hospital, mas morreu em 16 de março, quatro dias após o crime.

Criança de 6 anos

Outra característica comum aos homicídios analisados é o fato de a criança não ser o alvo original dos disparos, mas sim algum de seus familiares. Em nove dos 15 crimes que vitimaram crianças, um parente da vítima também foi morto ou então ferido. Foi o que aconteceu com Willian da Silva Rodrigues, de 6 anos, uma das sete vítimas na Chacina de Ibaretama, em 26 de novembro. Ele foi morto ao lado do tio e do irmão; uma parente sua ainda foi ferida. Conforme a Polícia Civil, o crime foi motivado por cinco dos mortos pertencerem à facção GDE; os autores do crimes eram do CV. Além da rivalidade entre facções, roubos ocorridos na região também teriam motivado a matança. A investigação aponta que a vereadora eleita do município pelo PT, Edivanda de Azevedo teria tido residência roubada por integrantes da GDE. Por isso, deu anuência ao crime, conforme o MPCE — ela nega a acusação. O processo da chacina se encontra em fase de instrução. Sete pessoas são rés.

Bala perdida

Também vítima de bala perdida foi Maria Vitória Sousa da Silva, 2 anos, no Pirambu. Conforme parecer do MPCE, ela estava em frente de casa com familiares, comemorando o Dia das Mães, quando foi atingida por um tiro. Perto dali, traficantes e policiais trocaram tiros — há relatos de cerca de 30 disparos. Um deles vitimou Maria Vitória. Em 29 de março, a Justiça determinou o arquivamento da investigação, sem indiciamentos, após pedido do MPCE, para quem não foi possível determinar a autoria do disparo fatal. Esse é um dos seis casos do levantamento em que ninguém foi preso pelo crime até o momento. 

Relembre os casos de crianças mortas no Estado em 2020 e 2021

Comitê denunciou alto número de crianças mortas em 2020

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O número de crianças mortas no Estado já havia sido assunto de uma nota técnica lançada, por ocasião do último Dia das Crianças, pelo Comitê de Prevenção e Combate à Violência, da Assembleia Legislativa do Estado (Al/CE). A nota destacava que o homicídio de crianças menores de seis anos no Ceará mais que triplicou em 2020 na comparação com 2019, quando cinco crianças dessa faixa etária haviam sido mortas. Também destaca o fato de que as crianças perderam a vida “quando ainda nem tinham consciência sobre a existência, a própria e a dos outros”.

O Comitê ainda menciona que pesquisa já havia mostrado dificuldade de responsabilizar autores de crimes contra adolescentes no Estado: de 1.524 processos de homicídio contra adolescentes em cinco anos, em apenas 2,8% houve a elucidação do caso. “A responsabilização dos homicídios cumpre duas funções muito importantes: garantir justiça e prevenir novos casos, evitando reincidências dos autores presos e inibindo as ações de outros potenciais agressores.”

Presidente do comitê, o deputado estadual Renato Roseno (Psol) destaca que os número indicam uma "tragédia humanitária". Crianças vítimas de arma de fogo, ele afirma, é uma realidade digna de países em guerra. “Não podemos naturalizar, isso causa horror”. Roseno também ressalta que essas mortes se concentram em "territórios de exceção", comunidades periféricas em que não há "segurança de direitos", conforme preconizado pela Constituição brasileira.

"Estamos há muito tempo falando, a melhor forma de combater o governo das facções é pela política de garantia de direitos. Leva mais tempo, mas ela reduz a violência de maneira sustentável", diz, criticando ocupações do Estado apenas pela força bélica. O deputado cita como exemplo a universalização da educação, em que o Estado ainda está longe de garantir acesso a, pelo menos, 50% das crianças de 0 a 5 anos a creches e escolas até 2024, conforme determinado nos planos municipal, estadual e nacional.

Por fim, o deputado critica a predominância das armas de fogo, ressaltando que a maioria dos crimes no Estado ocorre por esse tipo de arma. Mesmo armas ilegais, diz, em alguns momentos foram fabricadas e comercializadas legalmente.

SSPDS elenca medidas para prevenir violência contra crianças

Em nota, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) pontuou ter ações de prevenção à violência contra crianças e adolescentes. São projetos sociais desenvolvidos pelas vinculadas e também ações desenvolvidas pela desenvolvidas pela Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente (Dceca), especializada em crimes contra essa população e que conta com os atendimentos do Programa Rede Aquarela da Prefeitura de Fortaleza.

Equipe com psicóloga, assistente social e agente administrativa realiza atendimento especializado de
enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes e suas famílias.

A Polícia Militar, diz a SSPDS, "desenvolveu um policiamento proativo focado na resolutividade de problemas e na ampliação do vínculo dos profissionais de segurança pública com os cidadãos".A partir de doutrinas de policiamento de proximidade e comunitário, o Batalhão de Policiamento de Prevenção Especializada (BPEsp) tem ações no âmbito das bases do Programa de Proteção Territorial e Gestão de Riscos (Proteger), instaladas em locais com altos índices de criminalidade. Entre elas, destaca a SSPDS, estão o Grupo de Apoio às Vítimas de Violência (GAVV), o Grupo de Segurança Comunitária (GSC) e o Grupo de Segurança Escolar (GSE).

As ações incluem aulas de música, esportes, karatê, judô e envolvem cerca de mil crianças e adolescentes, conforme a SSPDS.

"É importante destacar também a integração entre prefeituras e Estado, Polícia e demais instituições, pois, dessa forma, além de intensificar a presença dos policiais como forma de interagir com a população, são realizados também os devidos encaminhamentos necessários durante ocorrências como abandono de incapaz, violência sexual ou qualquer tipo de negligência ocorrida contra esses grupos".

A SSPDS ainda cita a existência do Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd), também da PM; do Jovem Brigadista de Valor (JBV), do Corpo de Bombeiros; e da Divisão de Proteção ao Estudante (Dipre), da Polícia Civil, que desenvolve ações de prevenção à violência e ao uso indevido de drogas.

Documentário: Guerra Sem Fim

Os bastidores do conflito entre facções criminosas e os seus impactos para a população cearense voltam a ser contados na estreia da nova temporada do "Guerra Sem Fim", documentário original O POVO. Na próxima segunda-feira, 5, o primeiro episódio da segunda temporada estará disponível para os assinantes do OP+, onde também podem ser vistos os episódios da primeira temporada.

Episódio 1: Refugiados Urbanos

Episódio 2: GDE: como nasce uma facção

Episódio 3: Juventudes Sobreviventes

Como facções criminosas se uniram para lançar o Ceará em calamidade pública:

Vem aí a segunda temporada de Guerra Sem Fim, série original O POVO+. Aqui, o primeiro episódio da primeira temporada é disponibilizado também para não assinantes OP+

Com fortes imagens das ações do terror criminoso de janeiro de 2019, o episódio conta detalhes dos bastidores que levaram à eclosão criminosa, as estratégias das facções e a reação do Estado para conter a onda de violência.

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