Quando o assunto é crise climática, o sistema energético é o maior vilão. A produção de energia a partir da queima de combustíveis fósseis libera, anualmente, bilhões de toneladas de dióxido de carbono (CO₂). Só em 2023, segundo o Global Carbon Budget, foram 37,79 bi de toneladas de CO₂ emitidas no mundo.
Por isso, fala-se com urgência da necessidade de uma transição energética justa, ao acabar com o uso de combustíveis fósseis como petróleo, carvão e gás. Mas há outro sistema tão perigoso quanto, geralmente escanteado na lista de urgências. É o sistema alimentar, responsável pela emissão de aproximadamente 26% dos gases de efeito estufa mundiais.
E o principal produto-problema é justamente a carne vermelha. Para produzir apenas um quilo de carne bovina, emitem-se 99 quilos de gases equivalentes de dióxido de carbono (CO₂eq); ou seja, CO₂, metano, óxido nitroso e outros gases com potencial de aquecimento global. A estimativa é da pesquisa Reducing food’s environmental impacts through producers and consumers, publicada na revista científica Science, em 2018.
Ao analisar a cadeia de emissões, o consenso é claro: precisamos reduzir, se não cessar completamente, o consumo de carne, especialmente de ruminantes.
No top 10 de alimentos mais emissores de CO₂eq, o segundo lugar (chocolate amargo) emite 52 kg de CO₂eq a menos por quilo produzido em relação à carne bovina de corte.
A estimativa vem do cálculo de emissões de todas as etapas de produção da carne, do desmatamento para criar pastagens, passando pelo processamento até a distribuição.
Para começar a fazer alguma diferença no mundo, é preciso reduzir o consumo de carne para 255 gramas por semana. O pulo do gato é o seguinte: esse valor é para frangos ou suínos. Na prática, então, o ideal é comer até dois peitos de frango por semana.
A conclusão é da pesquisa Diets can be consistent with planetary limits and health targets at the individual level, publicada em março de 2025 na revista científica Nature Food, desenvolvida na Universidade Técnica da Dinamarca (DTU).
"A maioria das pessoas já percebe que devemos comer menos carne por razões ambientais e de saúde. Mas é difícil relacionar o quanto 'menos' é, e se realmente faz diferença no contexto geral”, explica Caroline H. Gebara, autora líder da pesquisa, em nota.
“Portanto, com base nos limites planetários, calculamos um número concreto – 255 gramas de carne de frango ou suína por semana – que você pode visualizar e considerar quando estiver no supermercado.”
Por outro lado, a carne vermelha é tão danosa que sequer consegue entrar em uma conta mínima de consumo aceitável. O gado corresponde a 94% da
Significa que todas as outras 6.300 espécies de mamíferos do mundo correspondem a apenas 6% da biomassa. Cite qualquer população, nenhuma será tão abundante quanto o gado.
Tem mais: o sistema alimentar mundial ocupa 45% de toda a terra habitável do planeta. E desse terreno, 80% está destinado apenas para o gado (produção de carne, laticínios e têxteis).
Todos os outros alimentos que estão no nosso prato são produzidos em 16% da terra voltada para o sistema alimentar. Os 4% restantes destinam-se à produção de algodão, biocombustíveis e similares.
Os dados são da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e da já citada pesquisa de 2018 publicada na Science, organizados pela Our World in Data.
A pesquisa dinamarquesa chegou ao valor de 255 gramas de carne de frango ou de porco a partir da análise dos limites planetários. Esse é um conceito consolidado em 2009, responsável por indicar nove classes de estruturas do sistema Terra essenciais para manter o planeta em equilíbrio.
Em 2025, já ultrapassamos sete dos nove limites planetários, tensionados pelo sistema energético em parceria com o alimentar, além do sistema de indústria química.
“É tipo a seleção brasileira do tetracampeonato”, alegoriza o climatologista Alexandre Costa, professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece). “Era um time bem meia boca, mas tinha dois atacantes muito rápidos: o Romário e o Bebeto. Eu digo que os combustíveis fósseis são o Romário, e a agropecuária é o Bebeto.”
“O Romário se destacava mais, ok; mas louco era o time que botasse toda a marcação defensiva em cima do Romário e deixasse o Bebeto totalmente livre.”
O professor Alexandre explica que a agropecuária consegue fragilizar diretamente mais limites planetários que os combustíveis fósseis, os grandes vilões do aquecimento global.
Ao desmatar grandes áreas para a instalação de gado e monoculturas (mudanças no sistema terrestre), por consequência impulsionando a extinção de espécies (integridade da biosfera); ao aplicar agrotóxicos, hormônios e antibióticos nas plantações e nos animais, introduzindo novas entidades no solo — o que também afeta a água doce.
Ao forçar a necessidade de colocar nitrogênio e fósforo no solo (ciclos biogeoquímicos) para recuperá-lo após as monoculturas e as pastagens, causando eutrofização dos corpos d’água. Animais ruminantes — bovinos, caprinos e ovinos — também têm a caraterística de produzir muito
Sem contar que, em média, consome-se 15,5 mil litros de água para produzir um quilo de carne bovina.
“É totalmente absurdo”, define o climatologista. “Esse número que o pessoal da Dinamarca chegou, de 255 g por semana, é razoável. Sob essa perspectiva, você nem precisaria abandonar completamente a proteína animal, mas é preciso reduzir substancialmente.”
Alexandre reforça que o problema está realmente no tipo de carne consumida, não na origem do produto, já que as emissões de transporte dos alimentos são bem pequenas em comparação à produção deles.
“O grosso das emissões não é transporte; até um gás de uma geladeira no armazenamento que escape, conta na pegada de carbono final. Mas isso não é o relevante”, pontua.
“Mas é óbvio, é muito mais saudável do ponto de vista socioambiental, é muito mais justo, inclusive, consumir localmente. Isso contribui muito mais com a soberania alimentar.”
Leia mais
Você pode se perguntar: mas reduzir o consumo de carne não seria um problema para a suplementação de proteína no corpo? A resposta mais direta é não.
“O léxico ‘proteína’ foi pervertido. A carne não é proteína, ela inclui proteína”, destaca o professor Alexandre Costa. “Como quase tudo que é vivo inclui proteína, né?”
Quem concorda com o climatologista é a nutricionista Luiza Mattar, especialista em pediatria e compulsão alimentar: “A gente tem muito o que é chamado de nutricionismo, que é reduzir um alimento a um nutriente. Então, hoje em dia é muito comum as pessoas falarem: ‘Ah, eu não comi carboidrato’, ou ‘eu tô comendo proteína’; em vez de falar: ‘Eu não comi arroz, eu comi carne’.”
Segundo a nutricionista, a indústria alimentícia, aliada à indústria do bem-estar (ou wellness), estimula esse reducionismo da comida para vender mais. Ela exemplifica com a criação do Whey Protein, originado da necessidade de destinar o soro do leite, subproduto tóxico (ao ser descartado) da produção de queijos.
Em 2022, houve um aumento de 25% no uso do suplemento, segundo levantamento realizado pela Associação Brasileira da Indústria de Alimentos para Fins Especiais e Congêneres (Abiad).
No entanto, a proteína é o macronutriente menos exigido pelo corpo humano, explica Luiza Matta. Das 2 mil calorias diárias, apenas 15% a 20% precisariam vir de proteínas, ou seja, no máximo 400 calorias — equivalente a
Já a recomendação para uma pessoa média, “que não é um idoso, nem um atleta, nem uma criança”, define Luiza, é de 0,8 grama de proteína por quilo peso.
“Então, uma pessoa que pesa 60 kg, 65 kg, vai precisar de 50 g de proteína. É fácil bater a meta de 50 g de proteína, não é muita coisa”, detalha a nutricionista. E essa proteína não precisa vir de fontes animais. Basta comer alimentos diversificados, aproveitando bem os grãos, legumes e verduras.
“Chega a ser engraçado, porque a proteína é o macronutriente que a gente menos precisa, mas parece que é o que as pessoas estão mais obcecadas”, conclui Luiza.
E por mais que estejamos apresentando valores de gramas e calorias diárias — um cálculo que não pode ser generalizado e varia para cada indivíduo —, a nutricionista destaca que essas metas sequer deveriam ser uma preocupação da pessoa média.
“Aliás, é muito revolucionário da parte do Guia Alimentar brasileiro não ter essa recomendação, porque isso não era para ser uma preocupação — a não ser que a pessoa tenha uma deficiência ou alguma questão. Mas aí ela vai buscar um médico.”
O Guia Alimentar para a População Brasileira, de fato, enfatiza a necessidade de uma dieta composta por alimentos in natura ou minimamente processados, em grande variedade e predominantemente de origem vegetal.
O documento também destaca que o consumo excessivo de carnes vermelhas pode aumentar o risco de câncer de intestino e de doenças crônicas e do coração — por geralmente estarem acompanhadas de muita gordura.
Por isso, ele recomenda a redução do consumo de carne. Dessa vez não por uma questão climática e ambiental, mas de saúde. Como bons substitutos, o guia recomenda peixes, aves e ovos.
Acesse a coluna de Eliziane Alencar: colunista do O POVO+ fala sobre veganismo do ponto de vista dos direitos dos animais
Essa substituição também pode ser benéfica para o bolso do consumidor.
De acordo com o Agregador do Preço Comparado, parceria entre O POVO e o Procon Fortaleza para estimular o consumo consciente e a pesquisa dos valores dos produtos, a cesta básica mais barata de Fortaleza em outubro de 2025 (entre as grandes cadeias de supermercados), é a do Cometa Supermercados: R$ 536,97.
Os dados disponibilizados pelo Procon Fortaleza avaliam 11 dos 13 produtos da cesta básica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), faltando apenas batata e manteiga. É justamente a carne bovina que mais pesa na balança.
De acordo com o Dieese, a cesta básica requer 4,5 kg de carne bovina de primeira. Entre o final de setembro e o começo de outubro, no Cometa Supermercados, o quilo do coxão mole está por R$ 56,99, e o do coxão duro por R$ 49,99. Segundo o Agregador do Preço Comparado, os 4,5 kg de carne bovina sairiam por R$ 188,97.
Dessa forma, a carne bovina equivale a 35,2% do valor da cesta básica, mesmo considerando o supermercado mais barato do momento. O segundo produto mais caro é o pão francês que, com 6 kg, consome 24,6% (R$ 131,94) da cesta básica.
É de se refletir, já que qualquer economia importa. Segundo o Dieese, mais da metade da renda líquida dos brasileiros que recebem salário mínimo (R$ 1.518, em 2025) vai para comprar os produtos básicos da alimentação.
No relatório de agosto de 2025, o Dieese indicou que o valor médio da cesta básica em Fortaleza era de R$ 723,06 — comprometendo 51,49% do salário mínimo líquido do fortalezense. Isso em um contexto de queda de 2,04% nos preços.
BRASIL, Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. 2014.
BURGIN, Connor J. et al. How many species of mammals are there?. Journal of mammalogy, v. 99, n. 1, p. 1-14, 2018.
GEBARA, Caroline H. et al. Diets can be consistent with planetary limits and health targets at the individual level. Nature Food, p. 1-12, 2025.
RITCHIE, Hannah. Food production is responsible for one-quarter of the world’s greenhouse gas emissions. Our world in data, 2019.
RITCHIE, Hannah; ROSER, Max. Half of the world’s habitable land is used for agriculture. Our World in Data, 2019.
POORE, Joseph; NEMECEK, Thomas. Reducing food’s environmental impacts through producers and consumers. Science, v. 360, n. 6392, p. 987-992, 2018.