
Nós precisamos reduzir, ou zerar, a produção de carne vermelha se quisermos contribuir no combate à crise climática. Isso é um fato. Como todo fato, há por trás dele uma teia de condicionantes, excludentes e realidades. Uma delas é que parar de comer carne é, verdadeiramente, difícil.
Não necessariamente em nível individual, mas cultural. Comer carne não é uma necessidade fisiológica (como discutimos no primeiro episódio), mas um hábito cultural e afetivo. Mais do que isso, é também um indicativo de status econômico.
Não à toa, o presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) prometeu durante a corrida eleitoral de 2022 que o brasileiro voltaria a comer picanha aos fins de semana. “É um sinal de status”, concorda a nutricionista Luiza Matta. “A carne está muito associada a esse lugar de um poder aquisitivo melhor.”
Em Fortaleza, o preço da carne vermelha (coxão mole) variou 105,80% nos supermercados, entre os dias 1º a 15 de setembro. O dado é do Agregador do Preço Comparado, parceria entre O POVO e o Procon Fortaleza para estimular o consumo consciente e a pesquisa dos valores dos produtos.
Nos supermercados mais baratos, o quilo do coxão mole sai por R$ 34,98; no mais caro, R$ 71,99. Isso em um cenário econômico de ligeira queda de preço da carne durante o ano de 2025.
Por outro lado, os subsídios para a agropecuária também influenciam a valorização da carne. Após articulação da Frente Parlamentar da Agropecuária, as proteínas animais foram incluídas na cesta básica com alíquota zero com a aprovação da reforma tributária, mas sem nenhuma obrigação de repassar a isenção para o consumidor.
Ou seja, produzir carne ficou mais barato, o que não significa que o preço da carne vai reduzir para o consumidor. Pelo contrário: o preço de outros alimentos poderá aumentar para compensar os impostos não coletados com a compra de proteínas animais.
Enquanto isso, produtos veganos seguem com todos os impostos, tornando-os especialmente caros para o público.
“Ontem mesmo a gente provou aqui em casa um iogurte de morango à base de leite de coco, nada de leite animal. Uma delícia. A questão é: quem pode acessar esses alimentos? Se é para mudar o planeta, por que eles são tão caros?”, comenta o professor de antropologia da alimentação Flávio Bezerra Barros, associado da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (UFPA).
“Por que um potinho de 150g desse iogurte de morango, com uma incidência maior de proteína e feita feita a leite de coco, custa R$ 18? A população não vai alcançar isso”, pondera.
“Se a intenção é diminuir o consumo de carne, proteger o planeta, fazer o equilíbrio do clima, então do ponto de vista econômico, a gente tem uma barreira, porque só o rico é quem vai acessar esses alimentos.”
Nesse sentido, vale destacar que, por conter muita gordura e proteína, a carne demora mais para ser digerida, contribuindo para a saciedade. “Quando eu como uma porção de carne, eu demoro mais para ter fome”, pontua a nutricionista Luiza Mattar.
“Aí entra nesse imaginário: se eu não comer carne, eu vou ter fome logo, eu vou precisar comer de novo, então eu vou engordar — o que não é necessariamente verdade”, complementa. Mais: em um País em que comida custa caro, sentir mais saciedade com “menos comida” é bônus.

No entanto, o status financeiro está longe de ser o único (ou o principal) motivo pelo amor à carne entre os brasileiros. “A nossa relação com a comida está para além de uma questão nutricional e fisiológica. Comida é sobre nossa identidade cultural”, define o professor Flávio.
A carne está na feijoada, no arroz carreteiro, na carne de sol, no pratinho, na paçoca, no arroz de galinha… Esses pratos “revelam quem nós somos” e como nos relacionamos com o mundo.
Além disso, é impossível ignorar o processo histórico que os humanos, como caçadores-coletores, construíram com a carne: da fonte de força às habilidades culinárias oriundas da descoberta do fogo e das produções de cerâmicas.
“Esse processo todo implica dizer que não é fácil se desvincular da carne, porque ela está impregnada na nossa história”, explica o pesquisador.
Há outro ponto ainda mais pujante: a carne é gostosa. “Ela tem um sabor agradável, ela dá prazer para as pessoas”, cita Flávio. Mesmo assim, é possível continuar gostando da carne e decidir pelo fim do consumo.
É o caso do jornalista Carlos Ely de Abreu, 56, que reduziu o consumo de carne justamente para lutar contra a crise climática: “Eu gostava de consumir carne, não vou mentir. A carne tá em todo canto, né? Você vai na Beira-Mar, é um pastel de carne. Você vai comer um baião de dois, tem carne de porco. A gente tá realmente imerso numa cultura que não pensa no impacto da nossa dieta.”
Foi em 2010, ao ter contato com o conceito do ecossocialismo, que Carlos decidiu transformar a dieta. “Eu sempre fui uma pessoa de esquerda e sempre pensei que a gente deveria buscar um mundo onde as pessoas fossem iguais. Mas aí tive a compreensão de que a gente não vai conseguir alcançar esse mundo se a gente não considerar nesta equação a natureza.”
Ele começou aos poucos. Primeiro, a carne bovina. Depois, frango e porco. Hoje, ele continua comendo frutos do mar e peixes. “Nós, como consumidores, temos importância”, destaca.
“Nós temos muita literatura, principalmente no que diz respeito à carne bovina, do impacto da produção de carne no clima. Sem contar que, no Brasil, a criação de gado é feita primordialmente no Centro-Oeste, e a gente sabe o impacto que isso causa — e agora também na Amazônia. (A mudança na dieta) foi a partir dessa tomada de consciência.”
“As pessoas estão tomando decisões políticas”, resume o professor Flávio. Parar de comer carne e outros produtos de origem animal sai do campo do sabor, automaticamente desafiando as pessoas a adaptarem suas culturas alimentares e pratos típicos.
“Algumas têm facilidade de seguir esse hábito, outras têm dificuldade. O hábito é um conceito antropológico: é aquilo que você gosta de fazer, que você tem o costume de fazer, que você faz todo dia. Mas essas adaptações estão tomando corpo, estão cada vez mais entrando (no mercado, nos festivais de gastronomia).”
“É possível modelar (a cultura alimentar), sim; porém é difícil porque tem implicações culturais. E quando a gente fala de implicações culturais, a gente fala da nossa ancestralidade, da nossa identidade, da nossa memória.”

Para além dos componentes do status financeiro e da herança cultural, há outro fator relevante na decisão de parar de comer carne: a identidade de gênero. Diversas pesquisas psicológicas têm demonstrado que homens estão menos propensos ao vegetarianismo e ao veganismo do que as mulheres.
Por trás da resistência, está a ideia do que é masculino. Um estudo da Universidade de Bath (Reino Unido), em parceria com a Universidade de Zurique (Suíça), identificou que o desejo de “evitar a feminilidade” e garantir um “status de realização” são duas normas masculinas que impulsionam a imagem do “homem carnívoro”.
“A carne tem sido associada à masculinidade há muito tempo, desde o mito dos homens como os únicos caçadores das sociedades pré-históricas até a imagem dos homens preparando churrascos hoje em dia”, comentam as autoras da pesquisa, publicada na revista científica Journal of Environmental Psychology, em setembro de 2025.
O que as pesquisas na área têm demonstrado é que a masculinidade é construída quase em oposição à natureza. A própria concepção de natureza como um ente feminino — a Mãe Natureza — está significativamente ligada à propensão das mulheres a terem comportamentos pró-ambientais. É o que confirma outro estudo publicado na mesma revista, em fevereiro de 2019.
A preservação da masculinidade também influi em outros aspectos climáticos. Em 2018, a cientista política Cara Daggett, do Instituto de Pesquisa para a Sustentabilidade (Alemanha), cunhou o termo “petro-masculinidade”, demonstrando como a masculinidade está atrelada ao uso de combustíveis fósseis — e ao lucro e autoritarismo oriundos deles.
“Combustíveis fósseis importam para novos movimentos autoritários no Ocidente por causa dos lucros e do estilo de vida dos consumidores, mas também porque as subjetividades privilegiadas estão encharcadas de óleo e empoeiradas de carvão”, defende a autora.
“A identidade masculina, e as ordens patriarcais suportadas por ela, é importante para entender a (falta de) respostas políticas à crise climática, especialmente no Norte global”, conclui Daggett.
É nesse contexto de manutenção de privilégios que a masculinidade encara o consumo de carne como algo “natural”, “normal”, “bom” e “necessário” para “performar e reforçar a identidade masculina”. Em 1990, a acadêmica feminista Carol Adams resumiu a situação no livro As Políticas Sexuais da Carne (1990): “Comer carne é um símbolo de dominância masculina.”
Acesse a coluna de Eliziane Alencar: colunista do O POVO+ fala sobre veganismo do ponto de vista dos direitos dos animais
Segundo as pesquisadoras da Universidade de Bath, a forma mais produtiva de convencer os homens a reduzirem o consumo de carne seria mudar o foco da comunicação.
Em vez de falar em salvar a natureza, o marketing de empresas veganas e vegetarianas poderia priorizar os benefícios das dietas à base de plantas, “especialmente em relação a proteínas, condicionamento físico e longevidade”.

DAGGETT, Cara. Petro-masculinity: Fossil fuels and authoritarian desire. Millennium, v. 47, n. 1, p. 25-44, 2018.
HANKINS, Elise et al. Macho meals? A mixed methods study on traditional masculine norms and animal product consumption in the UK. Journal of Environmental Psychology, p. 102693, 2025.
LIU, Ting et al. “Mother Nature” enhances connectedness to nature and pro-environmental behavior. Journal of Environmental Psychology, v. 61, p. 37-45, 2019.
OLIVEIRA, Rodrigo. Os bastidores do lobby que fez a carne escapar dos impostos. O Joio e o Trigo. Especial Lobby da Carne. Acesso no dia 13 de outubro de 2025, às 17h
Falar sobre a crise climática é uma tarefa complexa. A emergência é transversal e depende de esforços em todas as frentes para ser combate. Série de reportagens especiais explora a crise climática, da ciência à cultura