O Brasil destaca-se na América Latina. Não apenas por ser o único País falante do português ou pelas inúmeras belezas naturais e urbanas, mas pelas próprias dimensões territoriais. Em mapas, despontamos como uma imensidão continental, em contraste com os vizinhos menores.
De mesas europeias, a quilômetros de distância, Portugal e Espanha partilharam o território latino com o Tratado de Tordesilhas. Exploraram e abandonaram. Como consequência, cada divisão e processo de independência das colônias espanholas revela histórias de luta e força: libertação, ao menos em parte, das amarras da Metrópole.
Da mesma forma ocorre com o nosso País. Se os estados brasileiros não são separados como nas demais nações, não foi por falta de tentativa: os insatisfeitos gritaram e pegaram em armas para reivindicar direitos e dignidade.
Em resposta, houve repressão, e hoje o Brasil firma-se sobre um solo de brutalidade, sangue e silenciamento de vozes. Apesar da bela profusão cultural e social, convivemos com os resquícios da violência que nos moldou.
A história é contada pelos vencedores. As revoltas separatistas tornaram-se parágrafos em livros de história. Porém, e se não tivesse sido assim? E se as lutas da nossa história tivessem vingado? E se tivéssemos nos dividido? Nesta reportagem, O POVO+ te convida a uma viagem no espaço, no tempo e no espaço-tempo.
O “e se” atormentou a baiana Letícia Simões desde os tempos de escola. Lembra de conhecer as lutas dos revoltosos pela voz de professores de história e, como uma cola, a questão a acompanhou pelos passos seguintes da vida: na formação em cinema e na atuação como diretora.
Assim, quando reuniu-se com o produtor cearense Maurício Macêdo para discutir propostas de animação, em 2015, uma ideia monopolizava. Ainda o "e se". Uma década depois, ficou pronta a resposta na animação de longa-metragem, Glória e Liberdade (Brasil, 2025). O filme imagina como seria se quatro revoltas tivessem resultado em separação: a Cabanagem, a Balaiada, a Praieira e a Sabinada.
Conheça as quatro lutas tratadas na animação
Todas são lutas ocorridas no período da Regência brasileira. Na época, governantes se revezavam no poder enquanto o pequeno herdeiro do trono, Pedro, não atingia a maioridade para assumir o Império.
O pai dele, Pedro I, havia abdicado e voltado a Portugal, em meio a conflitos no país europeu. Os regentes estiveram à frente por nove anos até o início do reinado de Dom Pedro II, com o golpe da maioridade.
As quatro revoltas selecionadas pela animação são apenas um recorte. A Regência abarcou quase 20 conflitos de Norte a Sul, motivados por inúmeros problemas. Os conflitos estouraram pelo território aos montes.
O Brasil vivia uma “crise de autoridade”, conforme Sérgio Feitosa, professor de História, Filosofia e Sociologia do Ensino Médio e Pré-vestibular. Havia disputas entre liberais e conservadores, indicação de presidentes provinciais sem apoio local, centralização de poder pelo governo imperial, extrema desigualdade social, além de miséria das populações sertanejas, indígenas, negras e pobres livres.
“Tudo isso somado a uma crise econômica com queda na produção, secas e concentração fundiária, fomentou um ambiente de insatisfação, incentivado por ideias liberais, republicanas e abolicionistas, inspiradas na Revolução Francesa e nas lutas de independência latino-americanas”, explicou o professor.
Sérgio Feitosa, professor de História, Sociologia e Filosofia
Com tanto material, “Glória e Liberdade” focou em um cenário no qual apenas revoltas nordestinas e nortistas deram certo e, como cada uma tinha uma configuração própria, o “e se” levou a caminhos muito distintos entre cada uma delas. No ano 2050, o “continente Pau-Brasil” teria quatro nações independentes, cada uma nascida de lutas regenciais.
Como a animação "Glória e Liberdade" imaginou o Brasil separado de 2050
A Cabanagem (entre 1835 e 1840) foi um movimento de pessoas pobres, indígenas e “cabanos” - população às margens do rio e de suporte governamental. Armaram-se e chegaram a tomar Belém, capital da Província, estabelecendo um governo de três meses.
Se tivesse dado certo, o filme estima que o “Grão Pará” se tornaria uma nação indígena de 130 etnias, ligada diretamente às raízes delas. Língua própria, vegetação nativa, convívio com os encantados. A animação vai além e inclui o território em um contexto mundial: sofrem sanções e isolamento.
A segunda nação seria a “República de Caxias”, correspondente ao território das antigas províncias do Maranhão, Ceará e Piauí. O país, no filme, teria surgido com a Balaiada (entre 1838 e 1841), revolução oprimida na vida real.
Os balaios eram cestos produzidos por pequenos artesãos. Um novo imposto sobre eles, pelo Império, somou-se à desigualdade de terras e altas cobranças como estopim para a revolta de camponeses, escravizados, indígenas e pequenos trabalhadores domésticos. “Os que não tinham, contra os que tinham”, segundo o sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda.
Um país nascido pela Balaiada, segundo a diretora Letícia Simões, tornou-se um lugar “muito seco, onde nada cresce, mas que as pessoas se juntaram para fazer prosperar”. Cantigas e museus rememoram os antigos mártires.
Uma estética high tech, inspirada em obras como Blade Runner (Ridley Scott, 1982), circula o Recife, capital do Reino Unido de Pernambuco - resultado de um cenário no qual a Revolução Praieira (entre 1848 e 1850) obteve sucesso e separou-se do Brasil.
Diferente das demais, a revolta tinha caráter liberal e federalista. Reivindicava autonomia provincial, independência política e reformismo. Os revoltosos destituíram o presidente da Província indicado pelo Império e marcharam sobre Recife. Textos indicam adesão das camadas populares, mas a linha de frente seria de senhores de engenho, traficantes de escracvizados.
A conjuntura fez a animação ir por outro caminho. “Caramba e se tivesse vencido? Não dá para ser completamente utópico”, foi o questionamento de Letícia Simões e dos demais produtores e, assim, no filme, Recife virou uma distopia autoritária, marcada por desigualdades sociais. Como consequência outros estados membros do Reino Unido - Paraíba e Alagoas - brigam por melhores condições de vida.
Por fim, a Bahia, lar da protagonista do filme, Azul. O estado foi palco da Sabinada (entre 1837 e 1838), movimento liderado por Francisco Sabino Álvares da Rocha, Dr. Sabino, médico e líder político.
Descontentes com o Império, comerciantes, profissionais liberais, militares e até escravizados queriam proclamar uma República com autonomia. Chegaram a tomar Salvador, aboliram a escravidão e reduziram impostos.
Como era liderado por duas famílias, Sabino e Carneiro da Silva, o filme imagina um cenário no qual elas continuaram esse revezamento no poder. Sempre em movimento, a população reclama mudanças.
O universo imaginado pelo filme é complexo e extremamente detalhado. O exercício histórico e a produção durou uma década e envolveu pesquisa documental, entrevistas com historiadores e antropólogos.
O material apurado foi debruçado pelos produtores. Em meio ao caos de governos inclinados à extrema direita, pandemia e desastres ambientais, eles imaginaram uma realidade diferente da nossa, mas, ainda assim, complicada e desigual.
“Caso elas tivessem sido vitoriosas também há uma série de decorrências e consequências, então o mote do filme, a narradora que está fazendo essa viagem para outros países, eles estão em guerra, em luta, em processos revolucionários porque justamente a convulsão social está sempre presente”, conta Letícia.
Letícia Simões, diretora
A complexidade expressa-se ainda na estética. As referências visuais e sonoras são diferentes para cada “nação”. De Bacurau à Blade Runner, de documentos, livros e teses a animações e filmes. Tudo combinado resultou em tanta profusão quanto o nosso Brasil.
A odisseia pelo tempo contrasta com o real. Voltamos à unidade. Pernambuco não é uma ditadura high tech, o Maranhão não é uma comuna organizada e o Pará não é um país liderado por povos originários. Somos todos Brasil.
As revoltas regenciais nordestinas foram respostas ao abandono e à exclusão política e social, conforme o professor Sérgio. “Com diferenças entre si (algumas mais populares, outras mais elitistas), elas revelam que o projeto de nação construído após a independência não incluía todos — especialmente os mais pobres, os negros, os mestiços e os indígenas”, cita ele.
Todas foram reprimidas com violência. Forças imperiais marcharam sobre as cidades revoltosas e geraram até dezenas de milhares de mortos. Cerca de
"
Já a Cabanagem teria sido a mais próxima de um “sucesso”, para Sérgio Feitosa, ainda que considere uma resposta arriscada e difícil.
Ele justificou a escolha “pois os revoltosos tomaram Belém, instalaram governo e chegaram a controlar a província por meses. Mas faltava organização, recursos e apoio externo”. Como resultado, foi a mais letal: cerca de
Revoltas separatistas estenderam-se para além da regência, vale lembrar. O período colonial contou com lutas como a Inconfidência Mineira, a Conjuração Baiana e a Revolução Pernambucana. A Confederação do Equador, por outro lado, ocorreu ainda no reinado de Dom Pedro I.
A própria guerra de Independência teria provocado entre 2.000 a 4.000 mortos. A liberdade gerou um País no qual nem sequer o sentimento separatista precisa ser entoado para a opressão se revelar. Assassinato de indígenas; massacres em quilombos ou movimentos populares; perseguição a minorias e representantes políticos em Ditaduras. Isso tudo é Brasil.
“O presente determina o passado, muitas das vezes, em nossas inquietações, individuais e/ou coletivas. A violência estatal como resposta a levantes populares é um traço histórico nosso”, considera o professor Sérgio.
O educador segue: “Desde a Colônia até hoje, o poder costuma reagir com repressão dura quando sente sua autoridade ameaçada, especialmente quando a revolta vem de baixo”.
Como consequência, explica, o Estado brasileiro fundou-se sobre estruturas autoritárias, centralizadoras e excludentes, moldando uma tradição política que prioriza a ordem antes da escuta. “Por isso, revoltas populares raramente são tratadas como oportunidades de diálogo — são vistas como perigos a serem sufocados”, diz.
O quebra-cabeça visual do Brasil brilha aos olhos. Um mesmo território abriga a imensidão amazônica e as startups da Faria Lima. Ao mesmo tempo, a desigualdade cega. Nestes mesmos exemplos, encontram-se - respectivamente - comunidades carentes de recursos e empresários milionários.
“A união foi mantida, mas com feridas mal cicatrizadas”, diz o professor Sérgio. Segundo ele, “para manter o Brasil junto, o Império (e depois a República) forçaram uma unidade nacional, muitas vezes à custa da autonomia de províncias, da diversidade cultural e da justiça social”. E este preço seria o que pagamos até hoje: regiões desiguais, elites concentradoras e um Estado que demora a escutar as margens.
O espanto com a disparidade percorreu a história: está nas viagens de Euclides da Cunha ao abandono de Canudos, outra organização respondida com massacres; nas lutas das lideranças indígenas; dos movimentos populares; e até na sala de aula do professor Sérgio.
“Essa é uma questão curiosamente bastante levantada nas discussões suscitadas por essa temática. Impressionante a preocupação dos alunos quanto à questão identitária”, diz ele.
A própria questão “o que é ser brasileiro?” torna-se difícil de ser respondida. Cada período da história revela um pedaço da nossa identidade, para o professor Sérgio. As revoltas regenciais, para ele, indicam que somos esse “paradoxo entre diversidade e unidade”, ou de eternas lutas.
“O que nos torna Brasil não é um povo único, mas a soma de muitos povos, culturas e experiências, que aprenderam a sobreviver juntos — às vezes por imposição, outras por solidariedade. O Brasil é mais um processo em disputa do que uma identidade fixa. Ser brasileiro é, talvez, lutar para que esse país pertença a todos, de verdade”, considera.
Já a diretora Letícia Simões rememora o sufixo “eiro”, relacionado a profissões. Ser “brasileiro” seria trabalhar o tempo inteiro “uma lógica muito maluca de escassez”.
“Ter que ir e sair do nosso lugar para alcançar determinadas coisas. E diante de um país que oferece tanto, que é tão diferente, múltiplo, cheio de coisas, mas parece que nunca é o suficiente. Estamos sempre dando voltas em nós mesmos. É trabalhoso ser brasileiro”, disse.
Manter a memória viva seria uma maneira de não apenas evitar o apagamento, mas relembrar quem somos. E, assim como “o susto” e a revolta, o retorno aos movimentos existiu ao longo da nossa história.
Está nos registros Euclides da Cunha, nos manifestos dos movimentos populares; nos livros dos alunos do professor Sérgio; nas músicas da banda Nação Zumbi, que denunciou a desigualdade recifense do século XIX e rememorou a revolução na música “Praieira” - citada nos intertítulos desta reportagem. E, claro, na animação cearense Glória e Liberdade.
Por meio das andanças da personagem Azul, os produtores de Glória e Liberdade, buscaram o entendimento de que o Norte e o Nordeste têm poder próprio, muitas vezes escanteado pela história oficial. “A maior herança que podem ter deixado é justamente uma, talvez, confiança no modo de vida nosso - que ele vale a pena”, considera a diretora.
Página por página do material didático, uma linha do tempo de Brasil. As pinturas, os parágrafos, as fotografias dos vencedores predominam, mas os vestígios dos revoltosos ainda assim se mostram presentes. É com o que Sérgio Feitosa depara-se todos os dias e o que permaneceu com Letícia Simões.
Entre violência, acestralidade e afeto: somos brasileiros
“Os que lutaram por justiça, mesmo sem vencer”, afirma o professor. “Acredito que relembrá-las seja reconhecer que o Brasil não nasceu pronto — foi disputado, pressionado, ameaçado, punido,..., construído, inventado”, diz.
E completa: “É entender que os problemas de hoje têm raízes profundas, e que a desigualdade e o autoritarismo não são acidentes, mas construções históricas. Ao lembrar essas lutas, mantemos acesa a chama da crítica, da resistência e da esperança por um país mais justo e plural”.
Originadas em Pernambuco, as ações contrárias ao extremismo de Dom Pedro I se espalharam pelos estados do Maranhão, Rio Grande do Norte, Piauí, Pernambuco e Ceará. A Confederação do Equador é tratada no novo documentário do O POVO+, plataforma de streaming do Grupo de Comunicação O POVO.
Intitulada "Nordeste Insurgente", a obra reconta o que foi a confederação e destaca a participação cearense no movimento em prol da implantação da República no Brasil.
Trailer do filme Nordeste Insurgente
O quê? Animação "Glória & Liberdade" no Olhar de Cinema — Festival Internacional de Curitiba
Quando? Estreia 14 de junho (sábado), às 15h30, na Sala Claro - MON | Ingressos
Segunda exibição? 15 de junho (domingo), às 15h30, no Cine Passeio Luz | Ingressos
Sinopse
Estamos em 2050. O Brasil não existe mais. Após a sua fragmentação, Azul, uma jovem documentarista da República da Bahia, percorre os territórios do extinto Norte e Nordeste em busca de respostas sobre o colapso do que um dia foi uma nação unida. Mas ao fim dessa jornada histórica, é dentro da própria casa que ela encontrará sua revolução mais profunda.
Ficha Técnica
Direção e roteiro: Letícia Simões
Produção: Maurício Macêdo
Direção de Animação: Esaú Pereira e Telmo Carvalho
Montagem e Co-roteiro: Pablo Nóbrega
Produção Executiva: Priscila Lima
Desenho de Som: Nicolau Domingues
Trilha Sonora Original: Pedro Madeira
"Olá! Aqui é Ludmyla Barros, repórter do O POVO+. O que achou da matéria? Te convido a comentar abaixo!"