A arquitetura do Ceará emerge no cenário nacional não apenas como um eco do modernismo tropical, mas como um farol de práticas conscientes, onde a urgência climática e a desigualdade social moldam, de forma criativa, um novo paradigma do construir.
Este momento de efervescência, marcado pela ascensão de escritórios sediados no Nordeste e o reconhecimento em eventos de prestígio, confirma que a identidade construtiva local é, na verdade, uma resposta sofisticada e indispensável aos desafios globais.
Apesar das contradições que ainda saltam aos olhos e dos inúmeros desafios para a profissão, olhares, que historicamente eram voltados ao eixo Rio-São Paulo, agora miram também o Nordeste.
Para compreender a atualidade, é imperativo revisitar a história. A arquitetura moderna foi introduzida no Ceará, principalmente, pelos primeiros profissionais formados na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como Enéas Botelho, Neudson Braga e Liberal de Castro.
Marcia Cavalcante, professora do Instituto de Arquitetura, Urbanismo e Design da Universidade Federal do Ceará (UFC), elucida que esses profissionais vieram da chamada Escola Carioca, incorporando as premissas internacionais do modernismo — ausência de ornamentos, linhas retas, funcionalismo — aplicadas às edificações a partir da década de 1960.
Edifícios caracterizados pelo uso de brises e concreto aparente se concentraram em bairros como Aldeota e Meireles.
Neste panorama histórico, a figura de José Liberal de Castro (1926-2022) desponta, sendo considerado o mestre de toda uma geração.
"Liberal era um mentor da vida comunitária, uma pessoa de muita capacidade no trabalho e um dos pesquisadores mais respeitáveis do Estado", afirma Delberg Ponce de Leon, amigo do arquiteto por mais de 50 anos.
Ele foi peça-chave na fundação da Escola de Arquitetura da UFC em 1964, tendo viajado pelo Brasil com Neudson Braga para construir um acervo que se tornou uma biblioteca modelar.
Neudson Braga, que conheceu Liberal no Rio de Janeiro, corrobora a relevância do mestre, lembrando a parceria de anos.
"A nossa conduta, até pessoal, é completamente diferente. Eu sou um homem moderador e ele não, a gente tinha que trabalhar juntos até para fazer essas compensações. Foi uma amizade que perdurou durante todo esse tempo sem nenhuma briga," contou ao O POVO+ em 2022.
Braga lembra, também, que a Escola de Arquitetura da UFC, antes de formar a primeira turma, ganhou um prêmio internacional na Bienal de São Paulo.
Contudo, este rico acervo patrimonial enfrenta uma batalha diária contra o esquecimento e a especulação imobiliária.
Na Fortaleza contemporânea, ícones das décadas de 1960 e 1970 desaparecem continuamente.
O luxuoso Hotel Esplanada, projeto de Paulo Casé, por exemplo, foi demolido para dar lugar a um edifício de apartamentos.
"A arquitetura residencial e institucional modernista vêm sendo destruída da noite para o dia," denuncia Clóvis Jucá, professor associado da UFC, alertando para a necessidade de "ação de urgência".
"O que está por trás desta lógica destruidora, onde mais vale um edifício de vinte andares que uma residência moderna?", questiona, advertindo que a perda dessas bases territoriais fragiliza a memória.
Gérsica Vasconcelos Goes, doutora em Arquitetura, acredita que as consequências do desaparecimento da arquitetura moderna em Fortaleza são a perda de referências para a construção e para a memória afetiva do lugar e do pertencimento.
"Sem educação patrimonial não há preservação," finaliza Goes, argumentando que o patrimônio cultural é a materialização da nossa identidade e deve ser reconhecido, visto e sentido.
Não é possível falar da construção de um patrimônio e uma identidade arquitetônica sem apontar as contradições. E o desenvolvimento urbano do Ceará é marcado por inúmeras, em especial a profunda desigualdade socioespacial.
“Fortaleza já tem um desenho de cidade e arquitetura pouco convidativo à permanência no espaço público. Nossas calçadas são estreitas e delimitadas por muros, paredões ou grades sem espaços de permanência nem de transição entre o espaço público e o privado. A gente já tem uma cidade hostil”, afirma a arquiteta e urbanista Sara Vieira Rosa.
Rosa, que é pesquisadora do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará (Lehab/UFC), explica que essa é uma questão “que vem de problemas anteriores e mais profundos ligados à forma desigual e excludente de como nossas cidades são produzidas”.
Além dessa questão, a escassez de assessoramento técnico, por exemplo, impacta diretamente a população de baixa renda, resultando na construção de moradias precárias e ocupação desordenada de áreas de risco, especialmente em contextos de alto déficit habitacional.
Bianca Feijão, do Rede Arquitetos, aponta que a atuação da arquitetura não deveria ser definidora das edificações, mas um suporte, prezando sobretudo pela segurança e pela qualidade espacial.
"A nosso ver, a mudança da percepção do nosso serviço exige uma mudança no entendimento da profissão pela sociedade, por esforços institucionais e normativos, mas também nossa, enquanto profissionais, de como podemos efetivamente incidir na realidade", afirma.
A segregação é reforçada por problemas urbano como a desarticulação entre as esferas de planejamento e a ineficácia na aplicação dos Planos Diretores.
Outra face dos problemas está na chamada arquitetura hostil – o uso de elementos construtivos que visam a afastar e excluir a população em situação de rua do espaço público – espelha a face mais cruel dessa desigualdade.
Luiz Cattony, também do Rede Arquitetos, afirma que a essa características dos espaços vai muito além de pedras pontudas embaixo de viadutos.
"A hostilidade pode acontecer também de maneiras mais sutis, como bancos com divisões que impedem pessoas com obesidade de sentar e calçadas sem rampas que dificultam o deslocamento de pessoas em cadeiras de rodas", explica.
Com tantas questões ainda a serem resolvidas, o trabalho de profissionais que buscam soluções socialmente justas e ambientalmente sustentáveis se destaca como um farol de boas práticas.
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A arquitetura produzida no Ceará alcança um patamar de reconhecimento nacional e internacional sem precedentes com a presença de três escritórios – azulpitanga, Lins Arquitetos e Rede Arquitetos – na Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo de 2025.
Este marco não apenas projeta a produção do Ceará, tradicionalmente ofuscada pelo eixo sudestino, mas a coloca no centro do debate sobre o futuro da construção civil frente à crise climática global.
A co-curadoria de um cearense, Clévio Rabelo, no evento, endossa a relevância sistêmica desse movimento. Para André Moraes, CEO da azulpitanga, o feito é fundamentalmente estratégico.
"Nós entendemos que a presença em eventos de grande porte é vital para atrair recursos, atrair olhares, atrair transformações de olhares sobre o nosso território e sobre a nossa forma de fazer", aponta.
A arquitetura local, segundo ele, precisa ser mais valorizada e estimulada, tanto pelo governo quanto pela iniciativa privada, em detrimento da "importação de projetos e escritórios" de outras regiões do País.
E até a escolha do tema da Bienal, "Extremos: Arquiteturas para um Mundo Quente", demonstra a pertinência da experiência cearense.
"A visibilidade traz uma responsabilidade muito grande, especialmente por terem de levantar temas relevantes para uma prática mais responsável social e ambientalmente", reconhece Luiz Cattony, da Rede Arquitetos.
Segundo sua avaliação, a vida sob o clima semiárido e a alta desigualdade social do Nordeste dotam os arquitetos locais de uma expertise intrínseca em resiliência e adaptação.
Por isso, o futuro do ambiente construído, na visão dos profissionais, não é negociável em seus pilares.
O primeiro pilar é a adaptação bioclimática. Cíntia Lins, do escritório Lins Arquitetos, que elaborou o projeto do campus do Instituto Técnologico de Aeronáutica (ITA) em Fortaleza, enfatiza a necessidade de "produzir uma arquitetura adaptada ao clima", abandonando a reprodução acrítica de modelos de climas temperados em regiões quentes.
Ela defende a ideia de uma arquitetura atenta às questões climáticas e que possa utilizar elementos como pés-direitos altos, varandas para proteção solar e elementos vazados, como o cobogó.
Lins afirma que as soluções mais eficazes são as simples, que já vêm sendo praticadas pelo sertanejo há séculos, como a criação de grandes sombras e a ventilação cruzada.
O desafio dos recursos escassos, especialmente no Cariri, base do escritório, transforma-se em força criativa.
"A gente tem que produzir uma arquitetura de qualidade com o material que eu consigo encontrar na esquina," diz Lins.
Ela pontua que o uso de edifícios públicos como exemplos de desenho bioclimático pode servir como "soluções viáveis" para o mercado imobiliário, que frequentemente insiste em "grandes fachadas envidraçadas para o poente".
O segundo pilar é a arquitetura de interesse social. Bianca Feijão, também da Rede Arquitetos, defende uma mudança de perspectiva.
"Toda obra deveria ser pensada como de interesse social", declara. Isso significa que, mesmo projetos privados, devem considerar o lugar em que estão inseridos e incorporar responsabilidade social.
"O desafio seria, então, enfatizar o valor arquitetônico de projetos de pequeno porte e 'poucos recursos', desassociando a qualidade da arquitetura de orçamentos faraônicos, aponta a arquiteta.
"Tenho muita esperança que nós aqui do Ceará, do Nordeste, de uma maneira geral, poderíamos, de alguma maneira, liderar esses novos desenhos," conclui Cíntia Lins.
A experiência de criar soluções apropriadas ao clima e ao lugar, frequentemente com baixa curva de execução, consolida o Ceará como um modelo de assertividade para o futuro da construção civil brasileira.
A vanguarda da arquitetura e do design cearense encontra um palco vibrante na Casacor Ceará, que em 2025 chega ao seu 27º ano, reafirmando o equilíbrio entre tradição e inovação.
A diretora-geral Neuma Figueiredo revela que o evento se mantém relevante por "nunca deixar de olhar para as transformações do mundo". A edição de 2025 também celebra o legado do mestre Espedito Seleiro.
O tema da edição 27 da Casacor é “Semear Sonhos,” nascido da escuta ativa e do diálogo constante com os 41 profissionais que assinam os 34 ambientes.
Neuma explica que o tema celebra a identidade cearense, a força do artesanato e a conexão entre tradição e inovação.
Uma característica marcante deste ano é a homenagem transversal ao Mestre Espedito Seleiro, cuja obra e estética única estão presentes em diferentes ambientes.
Localizada na Rua Tibúrcio Cavalcante, no Meireles, a mostra ocupa 5 mil m² e traduz o morar contemporâneo com soluções funcionais e materiais responsáveis.
Um dos projetos, vindo da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), é o “Caminho das Águas,” que integra o paisagismo do arquiteto Bruno Ary.
O espaço utiliza Soluções Baseadas na Natureza (SBN) para promover uma reflexão sobre a jornada da água e apresenta mobiliário sustentável, como cadeiras, estantes e luminárias, criados pelo designer Érico Gondim a partir de resíduos operacionais da Cagece.
Lu Palhano, assistente de Sustentabilidade da Cagece, reforça a importância da iniciativa, afirmando que
"Apostar em um projeto como esse que promove economia circular é mais uma forma de diálogo sustentável com a sociedade".
Este panorama contemporâneo, que resgata a memória da arquitetura moderna e a sabedoria vernácula para enfrentar os desafios do século XXI, posiciona o Ceará como um laboratório de práticas arquitetônicas inovadoras.
Os profissionais locais, através da pesquisa e da valorização dos recursos e saberes do sertanejo, oferecem diretrizes de projeto que podem ser traduzidas em políticas públicas e servir de exemplo para outras metrópoles brasileiras que enfrentam o superaquecimento, liderando um movimento onde a arquitetura se volta de forma mais atrativa e inteligente para o próprio lugar.
O Ceará, assim, não apenas constrói edifícios; está desenhando um futuro em que a beleza e o funcionalismo nascem da profunda conexão com a terra e o clima.
A cidade, que um dia lamentou a perda de seus pilares de civilidade, hoje encontra a resiliência poética de quem sabe que construir é, sobretudo, um ato de afeto e consciência.