
Em fevereiro de 2025, O POVO+ contou as histórias de Regina Sousa, Marvin Alves, Sabrina de Paulo e Maria do Carmo, moradores das áreas de risco de Fortaleza que sofreram, e ainda sofrem, com as incertezas de viver em regiões sujeitas a riscos ambientais e às mudanças climáticas.
“De noite, eu me aperreio muito, não consigo dormir. [...] Só uma chuvinha que deu agora (fevereiro de 2025), eu já perdi tudo”, comentou à época Regina Sousa, 50, na comunidade Saporé, às margens do Riacho Maceió, no bairro Mucuripe.
O levantamento mais recente de áreas de risco em Fortaleza é de 2012, organizado pela Defesa Civil de Fortaleza (DCFor). Segundo ele, existiriam 89 áreas de risco na Cidade, nas quais aproximadamente 22 mil famílias convivem com o medo constante de perder tudo.
Espera-se que o Plano Diretor Participativo e Sustentável de Fortaleza (PDPS) seja construído com base em estudos atualizados, mas o novo mapeamento das áreas de risco ainda não saiu. Não foi incluído no diagnóstico da Cidade, etapa anterior à minuta. Também não consta nos anexos ou no documento finalizado.
Com o início da quadra chuvosa de 2025, a Prefeitura de Fortaleza, recém-assumida por Evandro Leitão (PT), e a DCFor confirmaram a defasagem do levantamento vigente dessas áreas vulneráveis. Os dados atuais somam 89, com base em estudos de 13 anos atrás.
“Nós podemos ter mais ou menos. Nós iremos reavaliar, se são 80 ou se muitas já foram resolvidas”, afirmou à época o coordenador da Defesa Civil da Capital, tenente-coronel Haroldo Gondim.
A promessa de reavaliação foi incluída na proposta de revisão integral do Plano Diretor, de fato, em andamento. Após cinco anos de atraso, a minuta da versão atualizada do Plano foi finalizada em outubro de 2025. O documento segue para a Conferência das Cidades e para a Câmara dos Vereadores, o último estágio do processo de aprovação.
São 690 artigos, que englobam desde a divisão social do espaço da Capital, áreas de proteção ambiental e tópicos de mobilidade. Em cada parágrafo, o Plano Diretor visa distribuir o espaço de uma forma justa e agir como um instrumento de redução de desigualdades.
Da nesma forma que o mapeamento atualizado das áreas de risco segue inconcluído e ficou de fora no diagnóstico da Cidade, outros estudos importantes não foram apresentados durante a revisão do Plano Diretor, como: capacidade de infiltração no solo, mapeamento de solos contaminados, capacidade de infraestrutura instalada e projeção do potencial e outros.
Estudos em falta no Plano Diretor, segundo especialistas da CAU-CE
A falta de dados gerou preocupação em organizações da sociedade civil. Com a Conferência das Cidades como única etapa restante — momento em que não será mais possível propor alterações na minuta do Plano Diretor, apenas votar o texto que valerá pelos próximos dez anos —, os grupos temem que o processo avance sem o embasamento necessário.
Depois dessa fase, a discussão caberá apenas à Câmara Municipal. Embora ela possa modificar elementos da minuta, a inclusão e execução dos estudos completos não seria possível dentro do prazo apertado estabelecido pela Prefeitura.
As entidades civis argumentam que a carência de dados compromete a formulação de políticas públicas mais assertivas. “Se não foi feito um diagnóstico para as áreas de risco, em que se baseiam as estratégias, diretrizes e ações do Plano Diretor para essas populações?” questiona Renato Pequeno, arquiteto e pesquisador do Laboratório de Estudos da Habitação (Lehab) da Universidade Federal do Ceará (UFC).

A ausência de dados atualizados sobre as áreas de risco em Fortaleza foi denunciada por membros do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Ceará (CAU-CE) durante debate sobre a Revisão do Plano Diretor, realizado na UFC em 20 de outubro de 2025 — quatro dias antes do início da Conferência das Cidades.
As áreas de risco de Fortaleza, segundo mapeamento de 2012
Para a arquiteta e professora Sara Vieira, o levantamento detalhado dessas áreas é fundamental para um planejamento urbano eficaz, sobretudo no manejo da água e na ocupação do solo. A falta de preservação das zonas de permeabilidade, explica, pode agravar problemas já enfrentados por regiões vulneráveis.
Como exemplo, a pesquisadora cita a dificuldade em definir padrões de construção. Quando a legislação não estabelece limites de impermeabilização dos terrenos, com base em estudos técnicos, os proprietários tendem a construir acima da capacidade de suporte do solo.
A água, sem espaço suficiente para infiltrar-se, escorre com força e rapidez para as regiões mais baixas da cidade, como riachos — entre eles o Maceió, onde Regina, moradora do início da reportagem, reside.
“As chamadas áreas de risco, sujeitas a inundações, tendem a registrar eventos cada vez mais frequentes e intensos quando o solo deixa de ser permeável. A impermeabilização das bacias hidrográficas é um fator crítico”, explica.
Somada à falta de dados que poderiam orientar limites de impermeabilização, a ausência de um mapeamento preciso — com a quantidade e local exato das áreas vulneráveis a inundações, desabamentos e alagamentos — torna inviável o sucesso das ações previstas no plano.
O mapeamento das áreas de risco, segundo os especialistas, deveria ter sido concluído antes das discussões do Plano Diretor, com uma forma de diagnosticar os pontos norteadores da revisão proposta.
Pelo menos treze artigos da minuta tratam diretamente de áreas de risco, prevendo políticas de prevenção, regularização fundiária e alternativas habitacionais para famílias removidas, com participação popular no processo decisório.
O que promete o Plano Diretor Participativo e Sustentável (2025) sobre as áreas de risco
A legislação também estabelece que zonas de risco devem receber atenção prioritária em ações de resiliência urbana. Sem os estudos necessários, porém, há o temor de que a versão final do Plano — que a Prefeitura pretende aprovar até novembro — contenha falhas nas definições de ocupação.
Para além dos problemas relacionados à capacidade do solo e às áreas vulneráveis, Sara explica que há o risco da cidade projetar densidades que sua infraestrutura não suporta, o que pode intensificar problemas de congestionamentos e a sobrecarga dos sistemas urbanos de transporte.

Esta é a terceira gestão de Fortaleza à frente do processo de revisão do novo Plano Diretor da Cidade. No mandato de José Sarto (PDT), um Consórcio foi contratado no valor de R$ 5,8 milhões para a elaboração de uma minuta. O documento nunca ficou pronto, mas 11
Com a mudança de gestão, a equipe do Instituto de Pesquisa e Planejamento de Fortaleza (Ipplan) ficou responsável por revisar o Plano. Os técnicos afirmaram terem recebido mais “dissensos que consensos” do Consórcio e citaram vários estudos em falta. Dentre eles, reclamaram da ausência de um novo mapeamento das áreas de risco.
“É preciso realizar a identificação das novas áreas de riscos e atualização das existentes, com metodologias mais robustas”, explicou a Secretaria de Governo de Evandro, em junho de 2025. O processo estaria sendo conduzido pela Defesa Civil de Fortaleza.
As áreas de risco foram temas de discussões não apenas da Prefeitura, como de demais órgãos. O Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), em agosto de 2025, realizou audiência pública sobre áreas ambientais, na qual analisou material diagnóstico da Prefeitura sobre localidades de risco em Fortaleza.
Contatado sobre as conclusões desses encontros, o órgão estadual informou ter apresentado, por meio da 133ª Promotoria de Justiça de Fortaleza, “à Comissão de Revisão do Plano Diretor de Fortaleza, (...) propostas para inclusão e revisão de áreas de risco da capital”.
“As sugestões destacam a necessidade de gestão urbana, política habitacional e ordenamento desses territórios e foram propostas a partir de diagnósticos técnicos com uso intenso de cartografia e análise de dados espaciais georreferenciados do Núcleo de Apoio Técnico (Natec) do MP”.

O novo estudo das áreas de risco está em produção na Defesa Civil de Fortaleza (DCFor) e deve ficar pronto em 18 meses a partir do início da elaboração, que ocorreu em setembro de 2025. Ou seja, sairá mais de um ano após a conclusão prevista para o Plano Diretor.
Segundo Haroldo Gondim, coordenador da DCFor, o Plano Diretor não se baseia no mapeamento de 2012, mencionado mais acima, mas em uma revalidação feita em 2025, com base nesses dados antigos. Não se trata de um estudo completo, mas de uma vistoria somente das 89 áreas mapeadas anteriormente, nada além.
Esses dados específicos indicam uma redução: de 89 para 74 áreas de risco em Fortaleza. O coordenador da Defesa Civil, assim como o Ipplan, alega que as informações foram apresentadas na primeira audiência pública do PDPS, realizada em agosto de 2025, cujo tema foram as áreas de risco. Segundo ele, são nestas 74 áreas que o Plano Diretor se baseia.
Em qual mapeamento das áreas de risco o Plano Diretor se baseia?
O mapeamento completo e atualizado trata-se do Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR), iniciado em 8 de setembro de 2025. Nele, todas as Regionais serão visitadas e novas áreas identificadas.
A DCFor estima um aumento significativo nas áreas de risco ao fim do estudo. Ou seja, o Plano Diretor está sendo formulado com base em dados subdimensionados, a serem atualizados.
“Quando nós terminarmos, quando tiver tudo mapeado e todos os relatórios entregues pelo Serviço Geológico do Brasil, ele será inserido dentro dessa seção do Plano Diretor”, acrescenta o tenente-coronel Haroldo.
A reportagem perguntou se estes dados ultrapassados não comprometem as políticas propostas do Plano Diretor, no que o coordenador da DCFor julgou se tratar do “contrário”.
“Esse dinamismo vai fazer com que a gente realmente sempre esteja atualizando esse plano na seção de área de risco para que se evitem novas ocupações, construções, enfim, protejam a vida. Então, o nosso o nosso viés é esse. Quanto mais, quanto mais dinâmico nesse sentido for, melhor”, diz.
- Ipplan
Ideia semelhante foi defendida pelo Ipplan. A pasta elencou o Plano Diretor como uma legislação "macro" e justificou os estudos preliminares, ainda que baseados somente nas áreas já existentes, como “robustos”. O PMRR, mencionado pela Defesa Civil, seria recepcionado posteriormente no PDPS por meio do Sistema Urbano Integrado de Gestão de Riscos e Desastres.
“O Plano reconhece que a matéria de riscos climáticos é dinâmica e necessita de constantes atualizações. Nesse sentido, o Sistema recepciona novos estudos (dentre eles) o PMRR”, informou o Ipplan.
Sobre as outras informações em falta, o Ipplan informou que o “mapeamento dos recursos hídricos foram realizados e enquadrados em Zonas de Proteção Ambiental (ZPA1 - Zona de Preservação Ambiental de Recursos Hídricos)”.
Já os demais pontos seriam “detalhamentos inseridos em políticas públicas próprias e de monitoramento da cidade para planos específicos”. “Como dito anteriormente, o Plano Diretor prevê que esses planos sejam realizados e estipula os prazos.”
O Ipplan completa: “A capacidade de drenagem das bacias e o mapeamento das áreas de solo contaminado são estudos previstos para serem realizados pela Prefeitura Municipal de Fortaleza em parceria com a Universidade Federal do Ceará — no escopo do acordo de cooperação técnica firmado entre a prefeitura e a UFC."
Para os especialistas, o processo "incompleto" e a pressa causam estranhamento. Marcelo Capasso, pesquisador colaborador no Lehab-UFC reconhece que os estudos podem ser incluídos depois, mas não considera totalmente claro como esses dados serão incorporados nas Zonas e nos Indicadores de um Plano já aprovado.
Segundo o pesquisador, o processo acerelado impossibilita os técnicos do Ipplan e da Defesa Civil de definirem "tudo o que podiam". "Eles também foram vítimas do atropelo”, completa, em menção à promessa de entrega do Plano ainda em 2025.
A urbanista Sara Vieira, por sua vez, reafirma sua preocupação com o caminhar do projeto na Câmara Municipal, onde “as decisões sobre a cidade, sem o embasamento necessário, acabam sendo muito mais políticas e fruto de trocas de favores”. Para os conselheiros, "não coletivizar as responsabilidades urbanas é tentar enxugar gelo".
Série de reportagens aborda as tensões sociais, econômicas e ambientais do processo de montagem da norma básica de planejamento urbano de Fortaleza. Anos de reavaliação revelam sérias problemáticas urbanas e desigualdade social