
Do palco, DJs comandam o tempo e os corpos se fundem ao ritmo hipnótico da batida. Luzes pulsantes atingem a fumaça densa e fazem tingir o ar de magenta e ciano. Nada vibra a menos de
A noite em Fortaleza não se rende mais à monotonia. Sob um céu sempre firme, carregado de estrelas e emanando um calor que não se esvai, pulsa um coração eletrônico que é, ao mesmo tempo, ancestral e futurista.
Não é somente música. É a Primavera Clubber, um movimento que tem redefinido a noite da Capital.
A cidade vive um momento de intensa efervescência cultural, marcada pela ascensão vertiginosa das tribos ligadas à música eletrônica underground.
Esse movimento, impulsionado nos últimos anos, especialmente após a pandemia, consolida-se como um polo de diversidade, estética e experimentação sonora, levando o cenário noturno a olhar para além dos seus polos culturais tradicionais.
A cena é definida por sua pluralidade e por um forte senso de comunidade, emergindo como um espaço seguro e acolhedor para corpos e identidades diversas.

O mar quebrava forte na Praia do Futuro quando os primeiros graves começaram a ecoar por Fortaleza. Era o início dos anos 1990, e os verões da cidade já tinham trilha sonora: forró, axé e lambada.
Mas em meio às guitarras e zabumbas, algo diferente começava a pulsar — uma batida eletrônica, contínua, hipnótica.
Não havia palco nem letreiro de LED, só uma caixa de som e dezenas de corpos dispostos a dançar até o amanhecer.
Foi ali, entre o sal e o vento, que nasceu a vocação de Fortaleza para o som eletrônico. As barracas de praia abrigavam os primeiros DJs locais e atraíam curiosos que se encantavam com a promessa de uma música sem refrão e de uma noite sem hora para acabar.
Na mesma época, casas noturnas começavam a operar numa Fortaleza que começava a demandar estrutura para além da informalidade.
Por volta de 1997, o Mucuripe Club se entra em cena como um dos “superclubes”: casa grande, boa estrutura física e programação variada, que não deixava de incluir música eletrônica, e capacidade de atrair públicos maiores.
Com o novo milênio, entre 2000 e 2010, a cena começou a ganhar contornos mais visíveis: DJs especializados, festivais como Ceará Music e a popularização das "tendas eletrônicas", e uma cena LGBTQIA+ mais organizada em torno de boates.
Os redutos noturnos passaram de lugares de diversão a espaços de sociabilidade, visibilidade, arte drag e, claro, muita performance.
Divine, Donna Santa, Meet e Music Box foram muito importantes para tornar possível a cena clubber atual, cultivando uma espécie de educação musical ao introduzir os ritmos eletrônicos na noite cearense.
O sociólogo Rafael Silveira de Aguiar, em “Lutas Simbólicas: a busca por espaços para a consagração entre os DJs de Fortaleza” (2018), analisa esse período como o momento em que os DJs passaram a disputar prestígio como quem disputa território.
Como cada espaço tinha o seu nível de importância e suas exigências, para fazer o som chegar a todos os lugares, os artistas passaram a se organizar em coletivos. Essa característica se mantém até hoje.
No documentário “Pragatecno - uma outra cena da mesma” o DJ Rodrigo Lobbão, que toca em Fortaleza desde meados dos anos 1990, comenta sobre a importância dessa organização coletiva.
“Os coletivos não tinham a intenção só de fazer festa. Eles são importantes para criar grupos que tenham um interesse além do comercial, que façam algo ligado a arte. Em Fortaleza, esse movimento foi um divisor de águas”.
Rodrigo foi um dos fundadores do coletivo Undergroove, considerado o primeiro núcleo de música eletrônica de Fortaleza.
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No início dos anos 2000, esse reconhecimento passou a ter novos palcos. As festas migraram para o centro e para bairros boêmios e os eventos foram se pulverizando.
Nesse ínterim, muitos clubes nasceram e pereceram com a mesma velocidade das batidas. Mas a chama se manteve — e, no subterrâneo da cidade, uma nova geração começou a pulsar.

Em 2017, o coletivo Eletrogeras deu os primeiros passos em direção ao que hoje é a cena clubber.
As primeiras edições do evento aconteciam em espaços fora do circuito de boates tradicionais, como o Salão das Ilusões, o Cena Casarão e o The Lights Bar.
Concebido por artistas independentes e, em sua maioria, negros, o Eletrogeras começou um movimento interessante: voltar a se apropriar de um ritmo e de uma estética que nasceram periféricos, mas foram assimilados e reconfigurados ao chegar na Europa.
Nessa época surgem também dois elementos fundamentais da cena: a Bateu, Pode Comemorar!, hoje uma das produtoras mais consolidadas do nicho. Boa parte dos produtores e DJs que atuam na cena, foram público das festas promovidas pela DJ Babita e pelo DJ Lucas BMR.
O DJ Rennó, residente da Bateu, aponta que a convergência dos artistas e do público para um lugar em comum foi um processo natural.
“É um encontro estético de uma galera se entende numa linguagem que é muito memética, que faz muito barulho, mas que faz sentido no final das contas porque é frenético, é muito pulsante e as pessoas querem viver isso 100% conectadas com a música”, aponta.
Criada em 2019 pelos DJs Gabriel Tuusmyr e RyanBNog, a Atr1ta também deu sua contribuição. Nascida do fervo de rua, em eventos abertos, quando The Lights Bar ainda funcionava rua Instituto do Ceará, no Benfica.
A ideia surgiu quando a dupla fazia um curso no Centro Cultural Belchior, e o nome do evento foi dado pelo DJ Chorumelas.
Acelerada por uma verba de edital do Centro Cultural Belchior, as festas foram sendo apropriadas pela comunidade e transformadas em espaços capazes de oferecer uma curadoria musical diferente e experiências únicas, unindo música e performance.
O início da década de 2020 marcou uma ruptura na noite fortalezense. A pandemia de Covid-19 silenciou as pistas, mas o vazio virou laboratório.
Durante o confinamento, artistas se reinventaram em casa, com lives, cursos on-line e mixtapes que mantiveram viva a cena underground. Aqui, o destaque para o trabalho da Bateu e da Atr1ta não podem ser ignorados, assim como o coletivo 1992, que nasceu da semente do Eletrogeras.
Produtores e DJs passaram a formar novos profissionais e, quando as restrições acabaram, a cidade já abrigava uma nova geração pronta para ocupar os espaços urbanos.
Foi o caso do coletivo Houzeria, pioneiro em levar os ritmos eletrônicos para a rua em formato de bloco de carnaval.
“Eu lembro que as pessoas ficavam apaixonadas, muita gente chegava falando que nunca foi em rolê eletrônico, viu pela primeira vez aqui na cidade e que amou, achou incrível”, relembra a DJ Lola García, que fez parte da primeira formação do coletivo.
O resultado dessa vontade de ocupar a cidade e as pistas tem aparecido com mais força desde 2023, em uma cena múltipla, plural e vigorosa que se distingue no cenário nacional por uma sonoridade intensa e uma pluralidade de ritmos.
Luis Porto, o DJ Quiro, explicou que a essência do coletivo Link tem o DNA da cena de Fortaleza.
“Nossa característica é integrar os tipos de música eletrônica e não ver música eletrônica como um só gênero. Pop é a música eletrônica, funk é a música eletrônica, techno, guaracha, tudo é música eletrônica".
“Aqui tem uma coisa bem única”, concorda Imani Marques, do coletivo Ignis, que é DJ, produtora e artista visual. “É uma cena muito brasileira, muito nossa. As festas se misturam, o público se reconhece. Tem techno, tem funk, tem latin club, e tudo funciona junto.”
Essa fusão rítmica — apelidada por alguns DJs de baile eletrônico tropical — é o coração da nova Fortaleza clubber.
Em vez de copiar fórmulas de Berlim ou São Paulo, os produtores locais inventaram um sotaque sonoro próprio, que se reconhece tanto na batida quanto na atitude.

Se nas raves dos anos 1990 o corpo era o templo da liberdade, nas pistas contemporâneas ele é também uma bandeira política.
O DJ e produtor Matthaus Linhares, conhecido como Matusa, sintetiza essa transição ao falar da sua festa, a Tubulosa - uma das mais vibrantes do circuito.
“A Tubulosa é feita de público para público. Eu era só um frequentador, e agora produzo minha própria festa. Isso cria um senso de que é preciso proteger a cena e criar um espaço seguro para todos”.
A presença de mulheres, pessoas negras, pessoas trans e corpos de todos os tipos, formatos e tamanhos tem sido uma marca da pista Fortalezense.
Alexa França, conhecida pelo nome artístico DJ Fuga, aponta que o fato dessas pessoas encontrarem na música eletrônica um ponto em comum, naturalmente as aproxima e cria um ambiente mais acolhedor.
“Quando eu comecei, meu foco principal era trabalhar a dissidência, inclusive de gênero, mas não só. Também na música, e em tudo que parece estranho, que parece que ninguém gosta”, realata. Agora, a artista será nova DJ residente da Link.
“Mas, de repente, tem alguém que acha massa também, tem alguém que também curte aquele mesmo som e a gente foi se unindo assim e criando um rolê em que a gente poderia ter oportunidade de curtir junto”, finaliza a artista.
Nandi, DJ da Link e artista visual, pontua que algumas ações práticas, como a adoção da
Lola García também destaca a preocupação com a segurança e o bem-estar do evento, citando os casos em que a produção chegou, sim, a expulsar dos eventos pessoas que tiveram comportamentos nocivos ou problemáticos.

Existe uma ligação entre a moda e a música eletrônica que ultrapassa gerações. Pensar em música é falar de expressão, e essa ideia está totalmente ligada a maneira de se vestir, entrelaçando as duas linguagens de maneira perfeita.
A tendência que domina a cena desde os anos 1990 é a “montação”, termo usado pelos personagens clubbers para definir suas produções grandiosas, experimentais e vanguardistas.
Com um tempero de elementos do grunge, o visual clubber passa a ser marcado por experimentações com androginia, e exagero por meio de looks com saltos, plataformas, roupas de vinil, coturnos, glamour e muita teatralidade na forma de agir.
Óculos e acessórios metálicos estão sempre nos looks
A pele exposta também faz parte da estética
Maquiagens e looks extravagantes não podem faltar
O espaço seguro dá mais liberdade ao corpo feminino
Na cena de Fortaleza, a incorporação de elementos do streetwear latino dá um charme especial. E por mais o dress code clubber tenha um apelo sensual, nenhuma transparência ou corpo à mostra significa um convite ao toque.
Mathugas, do coletivo Kolaje, é DJ e produtor, mas começou na cena noturna como fotógrafo e relata suas impressões sobre a apuro visual dos eventos.
"Sinto que isso vem muito desse lugar de liberdade de expressão, de liberdade corporal. A moda tem esse viés da sua autoafirmação enquanto indivíduo, expressa um estilo de vida, um modo de ser", pontua.
A DJ Nandi comenta que, nas festas, as pessoas se sentem mais confortáveis "para ousar ainda mais" e expressar a sua individualidade em looks e maquiagens que o dia-a-dia, por vezes, não permite explorar.
E o impacto dessa liberdade estética é tão forte, que permite que os frequentadores usarem desde a extravagância até o básico, como aponta a DJ Fuga.
O designer Rafael Lucas, conhecido como DJ Rafo, é responsável pela identidade visual de diversas festas do circuito, e enfatizou o papel da comunicação visual na consolidação da cena.
“Um design marcante, bem atraente, consegue chamar muita atenção e comunicar exatamente a essência daquele ambiente. E também acaba por criar uma identidade visual de cada evento e cada coletivo".
Com várias linguagens artísticas se unido para fortalecer a cena, não é difícil perceber o potencial clubber como um hub de economia criativa.
DJs, produtores musiciais, fotógrafos, designers gráficos e designers de moda e outros artistas visuais colaboram entre si e estimulam o consumo das produções locais entre o público, para além dos ingressos das festas.

Fortaleza sempre teve uma relação particular com o território. O corpo da cidade é feito de contradições: o centro histórico ao lado do mar, a periferia que pulsa cultura, a orla que alterna luxo e resistência. E a cena clubber se apropriou dessas tensões para reinventar o uso dos espaços urbanos.
Imani Marques, que migrou do Cariri para a capital, fala dessa apropriação como gesto político.
“A festa é um lugar de cura, mas também de luta. O que a gente faz é arte, mas é também ocupação e resistência”, afirmou.
A cena eletrônica foi reapropriada pela comunidade negra
Pela comunidade queer
E também pelas mulheres
Esse movimento ecoa o que os pesquisadores Claudio Duarte e Gisele Nussbaumer já haviam antecipado em “Cidade, Homossexualidade e Música Eletrônica: do espaço urbano ao virtual”: as subculturas sexuais e artísticas criam zonas autônomas dentro das cidades, reinventando os significados de pertencimento e cidadania.
As festas de Fortaleza materializam essa tese: o centro da cidade — antes evitado — virou ponto de convergência. O espaço público é reapropriado não só para o lazer, mas como ato de reivindicação simbólica e estética.
Mas ainda há entraves. Muitos produtores ainda relatam uma resistência das casas noturnas em deixar os eventos já consolidados para investir em um movimento que tem ganhado robustez há menos de cinco anos.
Por trás da euforia criativa, há uma engrenagem complexa. RyanBNog, da Atr1ta, lembra que além da equipe criativa, a cena movimenta fornecedores e prestadores de serviço e gera deslocamentos pela cidade, movimentando a economia de várias formas.
Produzir uma festa underground exige logística, investimento e coragem. A estrutura precária e o alto custo dos espaços ainda são desafios centrais.
“Aqui a gente tem uma pista muito grande, muita gente, mas nem sempre os locais comportam da melhor forma. Produzir é correr risco” explicou Mathugas.
Matusa, da Tubulosa, aponta ainda uma dificuldade do público de Fortaleza em compreender a dimensão dos custos operacionais de eventos de grande porte, o que faz com o que os preços dos ingressos ainda sejam pontos de atrito.

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A precariedade, porém, não desanima. Ela obriga os produtores a inventarem soluções criativas, a colaborarem e a formarem redes de apoio. Uma dessas formas é a organização, entre os coletivos, das datas dos eventos, de forma que elas não se sobreponham.
Mas partiu do próprio público uma das iniciativas mais pioneiras. O programador Paulo Victor Saraiva, frequentador assíduo de todos os eventos, teve a ideia de organizar as datas dos eventos em uma planilha colaborativa, que foi disponibilizada no Twitter.
Além das datas, o documento compartilhado tinha um espaço para o line-up e até o link de compra dos ingressos.
"Acabou que ficou pouco intuitivo para o usuário. Então, resolvi criar o site com o mesmo intuito. Agora eu alimento a planilha e o site é atualizado, e lá você encontra as mesmas informações, e agora com opções de favoritar eventos, filtrar e até achar cupons de desconto", relatou.
São essas nuances que fazem do underground um ecossistema autossustentável: um faz o som, outro cuida da luz, um terceiro costura os figurinos, outro fotografa.
Segundo o DJ Quiro, a autogestão é a essência do movimento. “A gente faz porque precisa fazer. Se depender de patrocínio ou do Estado, não rola. Então a gente cria, produz, toca e desmonta junto. É resistência.” afirmou
Há na cena, uma visão de que não vai tardar para que essas barreiras sejam quebradas. A Bateu e a NumaLaje, por exemplo, já aconteceram na Estação das Artes e a festa Fabrika, que deve acontecer em dezembro de 2025, conseguiu autorização para acontecer no Túnel Pintor Antônio Bandeira.
Mathugas atribui o sucesso dos eventos e essa conquista de espaço ao público, que é muito presente e fortalece o trabalho dos coletivos.
“Há total abertura para essas pessoas terem momentos de lazer ede se expressarem também, sabe? De expressar o seu eu, de expressar a e celebrar a sua forma de ser”, aponta.
O som de Fortaleza já não cabe nas fronteiras da cidade. DJs locais começam a circular pelo Brasil e pela América Latina. Festas do eixo Rio–São Paulo convidam artistas cearenses, e produtores de fora desembarcam na capital para entender o fenômeno.
Há quem diga que Fortaleza vive sua “década de ouro clubber” — e que o futuro da música eletrônica brasileira tem sotaque nordestino.
Lola García resume essa potência em uma frase:
“O que acontece aqui é uma catarse coletiva. A gente não imita ninguém, a gente inventa o nosso próprio caos.”
O pesquisador Jefferson Nunes já intuía, em 2010, que as raves eram “uma tentativa de regenerar o espaço público e reinventar a sociabilidade”. Quase vinte anos depois, sua previsão se cumpre: as pistas de hoje são arenas de pertencimento e desejo.
Fortaleza, cidade em transe, dança consigo mesma — entre o passado e o futuro, entre o analógico e o digital, entre o corpo e a cidade.
No fim, tudo o que resta é o som. O grave continua batendo. E ninguém quer que ele pare.