Logo O POVO+
80 anos da ONU: o ideal de paz diante de novos abismos
Reportagem Especial

80 anos da ONU: o ideal de paz diante de novos abismos

Os 80 anos da ONU acontecem em meio a enfraquecimento do multilateralismo e busca por reformas. Brasil defende renovação e destaca seu papel na organização

80 anos da ONU: o ideal de paz diante de novos abismos

Os 80 anos da ONU acontecem em meio a enfraquecimento do multilateralismo e busca por reformas. Brasil defende renovação e destaca seu papel na organização
Tipo Notícia Por

 

 

24 de outubro de 1945. Nascia a Organização das Nações Unidas (ONU), no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. A entidade foi concebida por países que se reuniram voluntariamente para trabalhar “pela paz e o desenvolvimento mundiais”.

O objetivo crucial era evitar um novo grande conflito global.

24 de outubro de 2025. Em um cenário de guerras e enfraquecimento do multilateralismo "é a cooperação entre os países para atingir objetivos comuns, em contraste com a ação unilateral ou bilateral. Essa abordagem é fundamental para a gestão das relações internacionais e para a solução de problemas globais, envolvendo a colaboração em áreas como segurança, economia e meio ambiente (Fonte: IA do Google)" , a ONU chega aos 80 anos, com uma série desafios que demandam grandes reformas, ante seu tamanho, transformações geopolíticas mundiais, polarização e corte de financiamentos.

ONU faz 80 anos em meio a avanços e impasses mundiais(Foto: ADOBESTOCK)
Foto: ADOBESTOCK ONU faz 80 anos em meio a avanços e impasses mundiais

A entidade cresceu exponencialmente, mais que triplicou, desde os seus 51 estados fundadores em 1945 para os atuais 193 membros.

Este crescimento maciço dá pistas de que a organização alcançou avanços e protagonismos em diversos momentos da história.

80 anos depois, fica a pergunta: o caminho trilhado até aqui dá indícios de desgaste? Qual o papel da ONU como uma organização multilateralista e, mesmo assim, cada vez mais polarizada?


 

80 anos em busca de uma cultura de paz

A ONU, por definição, não é um governo global, mas sim uma Organização Intergovernamental (OI) que serve a "uma cooperação de estados" soberanos.

Seu trabalho é planejado em torno de quatro objetivos principais, sendo o primeiro e principal "manter a paz e a segurança internacionais".

A primeira sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas foi aberta em 10 de janeiro de 1946 no Central Hall, em Londres(Foto: UN Photo/Marcel Bolomey)
Foto: UN Photo/Marcel Bolomey A primeira sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas foi aberta em 10 de janeiro de 1946 no Central Hall, em Londres

Outros objetivos incluem desenvolver relações amigáveis entre nações, cooperar na resolução de problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e ser um "centro destinado a harmonizar" a ação das nações.

A estrutura da ONU se assenta em seis órgãos principais, elencados no Artigo 7º da Carta das Nações Unidas: a Assembleia Geral (AG), o Conselho de Segurança (CS), o Conselho Econômico e Social (CES), o Conselho de Tutela, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) e o Secretariado.

Conheça a estrutura da Organização das Nações Unidas

Olhando para este propósito fundacional, o professor de Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Lucas Lima, diz que, se considerarmos que a ONU serviu para evitar uma Terceira Guerra Mundial, “ela não fracassou”.

Para o docente, a Organização das Nações Unidas foi fundamental para auxiliar muitos Estados a “ganharem a própria independência".

Além dos seus objetivos iniciais de controle de paz e segurança, a Organização expandiu enormemente as suas competências para incluir temas cruciais como direitos humanos, meio ambiente, desenvolvimento, investimentos e comércio.

Diplomatas e estadistas de destaque participaram de um banquete oferecido pelo Rei George VI à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em Londres, no dia 9 de janeiro de 1946, na véspera da convocação daquela assembleia(Foto: UN Photo)
Foto: UN Photo Diplomatas e estadistas de destaque participaram de um banquete oferecido pelo Rei George VI à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em Londres, no dia 9 de janeiro de 1946, na véspera da convocação daquela assembleia


 

O Brasil em um mundo multipolar

Em 1947, o diplomata brasileiro Oswaldo Aranha "Oswaldo Euclides de Sousa Aranha (15/1/1894-27/1/1960) político, diplomata e advogado brasileiro, que ganhou destaque nacional em 1930 sob o governo de Getúlio Vargas. É conhecido na política internacional por sua atuação como presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas em 1947, quando presidiu a sessão da Assembleia Geral da ONU que aprovou a Resolução 181, também conhecida como Plano de Partilha da Palestina, que estabeleceu a criação do Estado de Israel em 1947 (Fonte: Wikipédia)"  presidiu a 1ª sessão especial da Assembleia Geral da ONU, sobre a questão da Palestina, e presidiu a 2ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas.

Além disso, o Brasil foi um dos pouquíssimos países a contar com mulheres na delegação da Conferência de São Francisco, onde foi assinada a Carta da ONU.

Bertha Lutz foi cientista, parlamentar e diplomata, e graças à sua atuação, e à da dominicana Minerva Bernardino, a igualdade de gêneros está inscrita como princípio na Carta da ONU.

Bertha Lutz (Bertha Maria Julia Lutz), cientista, militante do movimento feminista e Deputada, integrou a delegação brasileira na Conferência de São Francisco, que negociou a Carta das Nações Unidas(Foto: UN Photo)
Foto: UN Photo Bertha Lutz (Bertha Maria Julia Lutz), cientista, militante do movimento feminista e Deputada, integrou a delegação brasileira na Conferência de São Francisco, que negociou a Carta das Nações Unidas

O Brasil se destaca como um dos membros fundadores da ONU em 1945, o que, segundo a historiadora Carolina Aguiar, evidencia o seu "compromisso com a organização desde o princípio".

O País, desde 1955, profere o discurso de abertura do Debate Geral da Assembleia Geral das Nações Unidas.

“Esse fato, apesar de simbólico, lhe confere uma certa voz na organização”, aponta Carolina.

Em nota, o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) reafirma esse orgulho em ser membro fundador.

“O compromisso do Brasil é inequívoco em relação aos valores fundadores da instituição, como a defesa da paz, dos direitos humanos e da igualdade entre nações", diz a instituição.

O Palácio do Itamaraty, em Brasília, símbolo da diplomacia brasileira e sede das relações do país com organismos internacionais como a ONU(Foto: Ministério das Relações Exteriores do Brasil )
Foto: Ministério das Relações Exteriores do Brasil O Palácio do Itamaraty, em Brasília, símbolo da diplomacia brasileira e sede das relações do país com organismos internacionais como a ONU

O Itamaraty reconhece, ainda, os "incomensuráveis aportes da Organização ao longo de sua história em favor da paz, do desenvolvimento sustentável e de uma ordem internacional baseada no direito internacional".

Além disso, o Brasil tem um papel fundamental no nível prático. O país atua dentro da ONU por meio de várias agências especializadas, fundos e programas desde 1947.

Dentre os destaques, podemos citar as atuações no Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

O Itamaraty destacou que o país seguirá trabalhando para que as ações das Nações Unidas tenham impacto positivo "sobre o bem-estar e as condições de vida de populações em situação de vulnerabilidade".

Conheça as agências integrantes da ONU

Em pautas contemporâneas, o Brasil é visto como um “país-chave” para as questões climáticas e o desenvolvimento sustentável, principalmente devido à vasta porção da Amazônia em seu território.

Esse protagonismo, torna o País uma parte essencial para "atingir os objetivos climáticos e relacionados a um desenvolvimento sustentável".

A relevância do Brasil nesse campo é demonstrada, por exemplo, ao receber grandes conferências da ONU, como a Rio 92, e pela preparação para sediar a COP 30.


 

Nova realidade pede por um "multilateralismo renovado"

Apesar do reconhecimento da importância da ONU, o governo brasileiro defende que a entidade e seus órgãos passem por uma reforma profunda para enfrentar os desafios atuais e futuros.

O Itamaraty diagnostica o cenário atual como de "deterioração do multilateralismo, aumento dos conflitos internacionais e cortes ao financiamento de suas ações".

Para combater esta crise, a visão brasileira para o futuro da ONU é moldada pela ascensão de um mundo multipolar.

Em seu discurso à Assembleia Geral da ONU, Lula afirmou que a autoridade da Organização está em "xeque" e voltou a pedir mudanças no Conselho de Segurança(Foto: Ricardo Stuckert/PR)
Foto: Ricardo Stuckert/PR Em seu discurso à Assembleia Geral da ONU, Lula afirmou que a autoridade da Organização está em "xeque" e voltou a pedir mudanças no Conselho de Segurança

O Ministério das Relações Exteriores avaliou que essa nova configuração global deve ser acompanhada por um "multilateralismo renovado, fortalecido e legítimo, capaz de garantir um mundo ‘pacífico e justo’".

A pauta de reforma mais proeminente e histórica do Brasil diz respeito à sua participação no Conselho de Segurança (CS).

O Brasil subscreveu o projeto de resolução do G4 (Alemanha, Brasil, Japão e Índia) para a ampliação do CS, defendendo a expansão de 15 para 25 membros.

Essa demanda se baseia na necessidade de o CS refletir o atual quadro geopolítico, particularmente em termos de uma "maior representatividade geográfica".

O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva (à direita), conversa com o presidente americano, Donald Trump, durante uma reunião bilateral em Kuala Lumpur, em  outubro de 2025(Foto: ANDREW CABALLERO-REYNOLDS / AFP)
Foto: ANDREW CABALLERO-REYNOLDS / AFP O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva (à direita), conversa com o presidente americano, Donald Trump, durante uma reunião bilateral em Kuala Lumpur, em outubro de 2025

No entanto, as fontes ouvidas pelo O POVO+ reconhecem a enorme dificuldade em concretizar essa reforma.

Um motivo tem a ver com a necessidade de modificação da Carta da ONU para ampliar o número de nações com assento permanente, um processo classificado como "bastante burocrático”.

O outro é mais político, uma vez que se avalia como “improvável” que os membros permanentes atuais demonstrem qualquer iniciativa de partilhar o poder.


 

O legado para os vulneráveis

Desde a sua criação, a Organização das Nações Unidas (ONU) tem desempenhado um papel central na defesa e promoção dos direitos das populações mais vulneráveis do planeta.

A igualdade de gênero é um dos pilares históricos da entidade: graças à atuação da brasileira Bertha Lutz na Conferência de São Francisco, em 1945, a Carta da ONU passou a incluir a expressão “igualdade de direitos entre homens e mulheres”.

Esse legado se reflete hoje na Agenda Mulheres, Paz e Segurança, que reconhece que a paz duradoura só é possível com igualdade de gênero.

A ex-diretora executiva da ONU Mulheres, Michelle Bachelet, durante encontro com a bancada feminina do Congresso Nacional e mulheres líderes da sociedade civil, na sede da ONU em Brasília(Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil A ex-diretora executiva da ONU Mulheres, Michelle Bachelet, durante encontro com a bancada feminina do Congresso Nacional e mulheres líderes da sociedade civil, na sede da ONU em Brasília

Por meio da ONU Mulheres e de iniciativas alinhadas ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5, a organização atua para empoderar mulheres e meninas e promover a equidade em todas as esferas da vida.

A proteção e o desenvolvimento das crianças também estão entre as prioridades da ONU.

A Convenção sobre os Direitos das Crianças, de 1989, define princípios fundamentais de sobrevivência, desenvolvimento, proteção e participação infantil, reforçando o compromisso de que “a humanidade deve à criança o melhor que tem para dar”.

O Unicef trabalha em mais de 190 países para oferecer acesso à educação, saúde e proteção, especialmente em contextos de vulnerabilidade e crises humanitárias(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA O Unicef trabalha em mais de 190 países para oferecer acesso à educação, saúde e proteção, especialmente em contextos de vulnerabilidade e crises humanitárias

Apesar dos avanços, o trabalho infantil ainda atinge milhões de crianças, e a ONU defende a educação como a principal ferramenta para prevenir a exploração e o tráfico infantil.

No campo do desenvolvimento econômico e social, a organização coordena esforços por meio do Conselho Econômico e Social (Ecosoc) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Iniciativas como os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e, posteriormente, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, consolidam o combate à pobreza e à fome como pré-requisitos para a segurança global.

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são uma agenda global da ONU com 17 metas para erradicar a pobreza, proteger o planeta e promover paz e prosperidade até 2030(Foto: ONU/Reprodução)
Foto: ONU/Reprodução Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são uma agenda global da ONU com 17 metas para erradicar a pobreza, proteger o planeta e promover paz e prosperidade até 2030

A ONU também desempenha um papel humanitário essencial na proteção de migrantes e refugiados.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) presta assistência a milhões de pessoas deslocadas, garantindo abrigo e proteção contra perseguições de natureza política, étnica, religiosa ou social.

Complementarmente, a Convenção Internacional sobre os Direitos dos Trabalhadores Migrantes e de suas Famílias amplia a proteção a todos os migrantes, documentados ou não, reafirmando que os direitos humanos são universais e indivisíveis.


 

ON80: o que esperar do presente e do futuro

Agora octagenária, a ONU enfrenta um panorama desafiador. A última década foi marcada por uma crise generalizada de organismos multilaterais e pelo aumento de conflitos.

Há uma certa descrença no papel da ONU, exacerbada por governos populistas, como o de Donald Trump.

No discurso propagado, é comum atacar as organizações internacionais, falando de "globalismo" ou de uma governança "que vem de fora" e tenta interferir na autonomia dos países democráticos.

A ONU enfrenta o desafio de manter sua credibilidade diante de crises globais, disputas geopolíticas e limitações na capacidade de agir com unidade e eficácia(Foto:  ANGELA WEISS / AFP)
Foto: ANGELA WEISS / AFP A ONU enfrenta o desafio de manter sua credibilidade diante de crises globais, disputas geopolíticas e limitações na capacidade de agir com unidade e eficácia

O analista de comunicação política Amauri Chamorro destacou que Trump mantém um estilo de comunicação voltado a gerar impacto na opinião pública.

“Ele não é um líder que vai construir através do diálogo, é um líder da violência, da força bruta”, afirmou o especialista.

Para ele, o presidente usa a estratégia da economia da atenção. “O importante é que as pessoas estejam olhando e falando de você. E nisso Donald Trump é invencível.”

 

A organização também lida com problemas orçamentários, como o subfinanciamento de órgãos de direitos humanos, e o fato de os EUA serem o maior contribuinte financeiro histórico, mas em certos períodos demonstra menor entusiasmo pelo multilateralismo.

Em reconhecimento à necessidade de se repensar, a organização lançou a iniciativa ON80, um plano que pretende ser "a demonstração de consciência da organização de que ela precisa de reforma" e de que não representa mais o modelo atual da governança global.

 


Para Lucas Lima, a manutenção da ONU e seu funcionamento continuam sendo cruciais para um horizonte mundial melhor.

Carolina Aguiar concorda que, apesar do panorama desafiador, é importante "reivindicar esse espaço da ONU", que é essencial para lidar com guerras, novas pandemias e as drásticas mudanças climáticas.

Em uma mensagem à imprensa, o secretário-geral Kofi Annan resumiu a relevância persistente da entidade: "é muito melhor a existência dela do que não tê-la no cenário internacional".

O que você achou desse conteúdo?