
Poucos de nós estamos lá para admirar o acordar das flores das onze-horas (Turnera subulata), quando os primeiros raios de sol tocam suas pétalas e acolhem o novo dia o degradê de amarelo a branco nascido do núcleo escuro. Na nossa pressa, desviamos delas focados no objetivo: a parada do ônibus, a academia, o supermercado, o trabalho.
Alguns de nós estalamos a língua para as flores no asfalto, questionando o cuidado do dono da calçada, desleixado o suficiente para deixar crescer ervas-daninhas, ou a qualidade do produto financiado pela prefeitura para pavimentar a cidade.
Sem um minuto extra no cronômetro imparável, ignoramos o único dia de vida da flor do asfalto. Às onze horas da manhã, ela morrerá, e será substituída por outra no dia que promete, sem quebras, chegar. Ignoramos a vitória de crescer na ranhura impermeabilizada, grande feito corriqueiro de ocupação insistente da terra. Ignoramos que a flor no asfalto somos nós, uma forte, e que ela, assim como nós, carrega em si todo o necessário para recomeçar.
Os biólogos perdoem as alegorias indevidas, mas gosto de descrever a evolução como o caos em si, esse conjunto de erros e acertos feitos do acaso. Uma única letrinha na quase infinita linha de DNA é escrita fora de ordem e um ser surge diferente — a sina atada à letra invisível.
Um azul royal na asa de uma borboleta, as digitais rugosas nas pontas dos dedinhos dos lagartos, o centro áspero de língua de gato da flor das onze-horas. Detalhes passados de geração em geração até virarem uma beleza quase fixa, quase própria, quase nossa.
Eu, pelo menos, acho que o recomeçar manda em mim. Todo dia acordo junto aos pombos que dividem o mesmo prédio que eu, e ambos podemos fazer mais um dia diferente, ou igual, ou só mais ou menos. Acordo como um ovo de passarinho no ninho improvisado no poste de energia.
Vejo as orelhas-relógio do meu gato atendendo ao abrir das minhas pálpebras. Admiro enquanto os olhos verde-amarelados me esquadriam e esse ser de quatro patas corre até mim e cheira meu focinho.
Alimento-nos e de repente não sou mais um ovo, mas uma lagarta que devora folhas na expectativa inconsciente da transformação. Enfrento a manhã como uma gosma no casulo, em algum momento perto do meio-dia tenho as asas do gavião-carijó que ronda os ninhos de bem-te-vi e os morcegos adormecidos. Ao pôr-do-sol sou uma árvore-anciã e meia noite durmo, entregue à morte momentânea que dará lugar para uma eu diferente de mim, para viver tudo de novo.
E essa eu-que-não-sou-eu ouvirá pela primeira vez os pombos do novo dia, verá como nunca as orelhas negras atentas do gato, sairá da cama com pés renovados e quem sabe decidirá que o dia é de criar guelras, não asas; ninhos, não casulos; placentas, não ovos.
Amanhã uma borboleta sairá de um casulo enquanto outra morrerá. Um passarinho dará o primeiro voo, outro estará preso ao ninho. O gavião-carijó terá caçado um morceguinho indefeso em Morfeu. Uma baleia adicionará mais uma nota à melodia milenar de sua linhagem e uma letrinha terá mudado no DNA do bebê na barriga de alguém. Amanhã a sorte é azar, o dia é noite, o caos é ordem.
Você perguntará o propósito de tudo isso. O lucro, a herança, a honra, as curtidas, os quilos, os prêmios. Juntará as retrospectivas em dígitos 1 e 0, procurando a identidade e o valor que a letrinha no DNA não satisfaz, que a ansiedade do mundo caótico não acalma, que as notícias globais não deixam de atordoar.
Procurará na linha do tempo a satisfação de um ano produtivo: parabéns, você leu 150 livros no ano, ouviu 2 mil minutos de música, caminhou 150 quilômetros, curtiu 800 mil posts… Os olhos do gavião, da borboleta, do gato e da baleia ficarão sem entender para que servem tantos números, enquanto a vida e a morte seguem alheios a eles.
Nós nos entendemos como indivíduos e esquecemos que somos uma corrente. O gavião-carijó, dessa vez afugentado por bravos bem-te-vis, é e não é o mesmo que foi seu pai e que será seu filho. O cachalote que hoje cruza o Atlântico é Moby Dick. A onze-horas cujas pétalas admiro é outra, mas penso ser a de ontem. Eu e você somos todos os humanos, e de alguma forma permaneceremos. Em vida, nas entrelinhas do DNA, na memória, na arte... Ou então nos lixões. Às vezes, a vida é feia.
O tubarão, na letra genômica do seu gênero que ocupa a Terra há cerca de 450 milhões de anos, lembra de ver as primeiras árvores surgirem e os anéis de Saturno formarem-se. Lembra dos humanos cruzando o oceano, lembra da primeira bomba nuclear. Lembra da guerra fria e da dita paz da ONU. Ele viu a água esquentar e esfriar e esquentar novamente — mas ele segue aqui.
A esperança há de recair nessa memória acumulativa. Há de existir apesar de tanta desgraça, porque a vida continua, as cores brilham e eu quero que a humanidade possa ser eu e eu a humanidade. Hemos de ser capazes de criar uma melodia eterna, como as baleias, e de apostar na transformação inerente da natureza.
Na flor que morre e renasce, que insiste em crescer na ranhura do concreto simplesmente porque há espaço, sempre há. E quando ela abrir as novas pétalas, agradecerá ao passarinho que comeu sua semente e a jogou ali; à abelha que antes carregou seu pólen do pai à mãe; antes ainda, ao fungo que preparou o solo para o crescimento dos antepassados, e assim por diante, até chegar finalmente naquela letra minúscula, num traço invisível, que nos deu a sorte de admirar a pétala branca pintada de amarelo da flor do asfalto.
Basta querermos. Basta pararmos um segundo para capturar a cor e decidirmos criar em nós mesmos pétalas, não concreto. Para que amanhã, quando a onze-horas acordar diferente, nós sejamos capazes de a acompanhar e renascer igualmente, em uma revolução íntima e estrondosa.
Em clima de reencontro, atravessamos mais um ano e trazemos histórias de personagens que emocionaram, envolveram e encantaram o público, em reportagens veiculadas nas plataformas do O POVO+. São protagonistas da vida cotidiana que encaram passado, presente e futuro