
Com qual frequência pensamos sobre acessibilidade para quem sequer entende a escrita dessa palavra? O letramento é uma questão ainda grave e urgente no Brasil, por envolver grande proporção de brasileiros e limitar a autonomia e compreensão da própria cultura para essas pessoas.
Dados do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), divulgados em maio deste ano, mostram que o analfabetismo funcional aumentou. Hoje, três a cada dez brasileiros entre 15 e 64 anos não sabem ler e escrever ou não conseguem compreender pequenas frases. Em relação a 2018, o número cresceu 2% do total.
Em uma cadeira de rodas, Reginalda Batista, ou Naldinha — como prefere ser chamada, destaca que sua maior limitação não é física: “Sou uma pessoa com deficiência desde os nove meses, mas, por não saber ler, me sentia ainda mais limitada. O pior cego é aquele que não sabe ler”. Ao Vida&Arte, a mulher de 47 anos conta que um dos principais desafios da sua vida foi conseguir aprender a ler.
Izabelle Vasconcelos, orientadora da célula de Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Ceará, aponta a falta de letramento como um fator que dificulta que indivíduos acessem a própria cultura. “Isso impede o acesso a muitas experiências: participar de debates, compreender expressões culturais, acessar a literatura, o teatro, o cinema, as artes visuais. Isso afasta a pessoa da produção cultural e do sentimento de pertencimento”, argumenta.
“Como dizia Paulo Freire: ‘Tão importante quanto ler a palavra, é ler o mundo’. Essas pessoas, mesmo não alfabetizadas, já estão inseridas num mundo letrado, mas precisam das ferramentas para poder participar dele plenamente”, pontua.
Ela descreve ainda que não basta reconhecer somente a problemática relacionada ao baixo conhecimento de escrita, mas também habilidades de interpretação. Nesse contexto, o professor da rede estadual e doutor em linguística pela UFC, Gustavo Henrique, elucida a diferença entre alfabetização e letramento.

A alfabetização se constitui como o processo de aquisição da tecnologia da escrita, desde as técnicas para lerem e produzirem textos até saber usar um lápis, uma borracha e outros suportes.
“O letramento, por sua vez, diz respeito às capacidades de uso desse recurso. Quando as pessoas conseguem usar a tecnologia da escrita para interagirem, para participarem ativa e plenamente das mais diferentes práticas sociais, elas demonstram seus diferentes graus de letramento”, diz.
O professor discute ainda que ambas as habilidades são complementares. Citando a pesquisadora Magda Soares, ele destaca: “A alfabetização não é pré-requisito para o letramento, a criança aprende a ler se envolvendo em atividades de letramento”.
A limitação ocasionada pelo não-letramento pode oferecer, além da menor compreensão do mundo, riscos de declínio cognitivo no processo de envelhecimento. Ao Vida&Arte, o neurologista Norberto Frota explica que os prejuízos à saúde mental podem ser contornados pela exposição contínua à educação e a atividades intelectuais, que permitem que o cérebro mantenha o desempenho mesmo diante de danos.
Ele conta que o cérebro humano sofre pequenas lesões e desgastes naturais com o envelhecimento. As pessoas que tiveram maior exposição à educação formal e a atividades intelectuais ao longo da vida conseguem, mesmo com algum dano cerebral, manter um melhor desempenho cognitivo em relação àquelas que não estudaram.
“Atividades culturais podem ser positivas nesse processo, mas o benefício maior vem quando há participação ativa. Existe, por exemplo, um estudo japonês, ainda que antigo, que comparou dois grupos: um que somente lia um texto e o outro lia o mesmo conteúdo e depois explicava ou discutia com alguém. O segundo grupo apresentou melhor desempenho cognitivo”, pontua o médico.
Ele aponta para a necessidade de um consumo cogitativo de atividades culturais, como discutir, refletir, comentar e trocar ideias sobre filmes, músicas, teatro e até programações na TV. “Atividades interativas são muito mais eficazes para manter a mente ativa — conversar sobre o que viu, trocar opiniões, lembrar detalhes. É isso que faz diferença”, sintetiza.

Existem várias razões pelas quais pessoas não letradas costumam ter menos acesso à arte e cultura, incluindo motivos não óbvios para quem teve formação básica completa. Uma delas diz respeito à autonomia e autoconfiança de quem não tem domínio da linguagem escrita.
“Não ser alfabetizado é um dos (falsos) sinais de que uma pessoa fracassou na vida. Assim, o indivíduo acaba se privando de muitas coisas", analisa o professor de linguística Gustavo Henrique.
"Deixa outros direitos de lado por medo de ser ignorado ou até mesmo maltratado ou por ‘não saber falar’; não cogita ir ao teatro, ao museu, ao cinema por ‘não saber andar nesses cantos’, por achar que ‘não é lugar para ela’; não consome outros produtos culturais por achar que é ‘coisa de gente estudada’ ou por não conseguir acessar tal linguagem, mesmo sendo audiovisual, dado o possível rebuscamento”, contextualiza.
O educador ainda reitera que, apesar de dever do Estado, pessoas não alfabetizadas e com baixo grau de letramento tendem a não culpar as autoridades por seu nível de escolaridade, mas punem a si mesmos.
Com situações práticas, ele exemplifica limitações: “Imagine uma pessoa que é alfabetizada, mas não tem o letramento literário aguçado — que também deve ser aprendido na escola. Podemos levantar a hipótese de que sua fruição ao ler um romance ou um soneto pode ser limitada, isso se houver interesse dela por esse tipo de obra”.
“Essa pessoa não detém as ferramentas (as estratégias de leitura de um texto literário, dentre outras) necessárias para participar ativamente da construção dos sentidos dos textos que a ela são apresentados. Isso vale para um livro, um filme, uma peça teatral, considerando aqui já outros tipos de letramento”, acrescenta.

A cultura popular, no entanto, costuma ser mais aberta. Nesse cenário, o professor cita produtos culturais vivos nas comunidades mais vulneráveis, onde, estatisticamente, vivem mais pessoas não alfabetizadas.
“Existem danças, manifestações teatrais, como o Slam, música, o grafite, a novela e outras obras comumente consumidos por elas, o que nem de longe é problema — inclusive, a escola peca, muitas vezes, por não os legitimar, afastando esse público”, diz.
“Acredito que o problema está no fato da falta de oportunidades que essas pessoas têm de escolher, isso porque sua escolarização a limita”, agrega.
Raimundo Orlando, de 48 anos, é uma das pessoas em processo de letramento que o Vida&Arte ouviu para esta reportagem. Sua vida sempre esteve repleta por artes, pois, desde a infância, é envolvido com produção musical. “Toco forró pé de serra, que faz parte da nossa cultura. Já toquei várias vezes. É o que eu mais gosto de fazer”, relata.
A razão para voltar a estudar, no caso dele, foi justamente para entender melhor do que ele mesmo produz e já consome: “Hoje consigo compreender o que leio, o que escuto nas músicas, o que vejo nos filmes. Antes eu não prestava tanta atenção, hoje entendo o sentido, o significado."
Outra artista, colega de escola do Orlando no EJA Angélica Gurgel, é Naldinha — citada no início da reportagem. Ela atua como dançarina sob rodas e palestrante contra o bullying, mas somente há poucos meses conseguiu realizar seu sonho de estudar. Uma de suas intenções com o aprendizado é conseguir acessar livros de receita, para desenvolver seus dotes culinários.
“Não saber ler pode fazer a gente ser enganada. Acabamos sendo roubado dos próprios sonhos. Às vezes, tem um curso gratuito, uma oportunidade, um cartaz de emprego, e a gente perde tudo porque não sabe ler. Foi nesse momento que comecei minha luta para voltar a estudar”, disse a artista, aos 47 anos.
Já Antônio Alencar de Castro está finalizando seus estudos de ensino fundamental aos 67 anos. Sob incentivo e companhia da filha, ele já visitou alguns museus de Fortaleza e cultiva o sonho de aprender a ilustrar.
“Tenho muita vontade de desenhar bem. Às vezes faço umas casinhas, uns pezinhos de planta, mas quero aprender direitinho a desenhar uma pessoa, um rosto. Porque quando a gente vai renovar a habilitação, por exemplo, tem que saber fazer uma figura, né? Quero aprender isso direitinho”, compartilha.
“A gente estuda arte aqui, e é bom para gente aprender a ver o que tá acontecendo ao nosso redor, entender as coisas e refletir. A leitura ajuda muito nisso”, complementa.

A vida de todos é marcada por conquistas, companhias e aprendizados. É nessa perspectiva que o casal Valnísia Maria, de 59 anos, e José Mendes, de 63, decidiram voltar aos estudos juntos. Quem tomou a iniciativa foi ela, cujo interesse era passar menos tempo diante das telas de TV e aprimorar sua leitura, para poder consumir mais sobre jardinagem, plantas e adubos.
Já ele, passou a acompanhar sua esposa e se empolgou ao comunicar melhor as informações ao seu redor: “Eu já lia e escrevia, mas cometia muito erro. Às vezes eu lia o que escrevia e entendia, mas quem lia não entendia. Então quis ajeitar isso. E aqui melhorou muito."
No caso dos dois, vivências culturais e produções artísticas nunca foram uma prioridade na vida, pois, desde muito cedo, trabalhavam muito para sustentar sua casa e família. O casal está junto há 40 anos.
Foi somente no EJA que eles ampliaram o contato com linguagens artísticas. No caso de Mendes, que profissionalmente já fazia trabalhos manuais na oficina que trabalha, aproveitou de suas habilidades para esculpir maquetes ultrarrealistas na escola. Com orgulho, ele fala de um dos trabalhos que fez para apresentar em uma feira de ciências.
“Fiz uma casa de taipa, com um cavalo de talo, muita lenha… Fiz uns bonecos, com uma cama e redes com pessoas deitadas… Tinha um poço com água puxada por um balde, igual sistema de interior. Quando me perguntavam, eu dizia ‘passei por tudo isso aqui’. Foi um sucesso com a galera”, disse.
Renata Facundo, diretora da Escola Municipal Angélica Gurgel, onde o casal estuda, destaca o estímulo ao fazer artístico em sala de aula: “É muito importante para o desenvolvimento integral do aluno que a gente não desenvolva só a parte cognitiva voltada para o conteúdo. A gente tem consciência que a arte desperta muitas outras habilidades. Quem trabalha em escola investe muito nisso porque sabemos o impacto que essas ações tem no emocional e na sensibilidade dos alunos.”

Para a artista e docente em artes Thais Pinheiro, o contato com a arte é essencial não somente como lazer, mas como meio para compreender a própria cultura, mencionando a função histórica da arte no registro de épocas passadas.
“A arte nasce da necessidade humana, está ligada aos códigos. Na educação, ela é considerada uma linguagem, tanto que estudamos semiótica para compreender seus significados e propósitos. Na infância, ela é essencial porque introduz a criança ao processo educativo”, explica.
A especialista divide a importância da arte em três categorias de contato e aprendizado: estética, comunicativa e histórica. Citando Paulo Freire, ela menciona a importância de educar pela aproximação com o assunto.
“Um aluno que talvez não tenha tido uma educação formal em arte pode, mesmo assim, ter tido contato com manifestações da cultura popular — festas juninas, reisados, festas do Divino — ainda que não conheça suas origens. Já quem teve uma formação linear, com acesso à arte formal, entende as referências, os artistas, as cores, as técnicas”, explica.
Sobre a função histórica da arte, ela reforça: “É por meio dela que entendemos épocas, costumes, modos de viver. Antes da fotografia e do audiovisual, era através da pintura e da escultura que se registravam essas experiências”.
Thaís, nesse contexto, reconhece que as manifestações artísticas podem ser excludentes, principalmente a quem não tem domínio do letramento. “A TV, por exemplo, faz parte da cultura de massa e chega a praticamente todo mundo, assim como muitas manifestações populares. Mas, quando a gente fala de espaços como teatros e museus, a realidade é diferente”, acusa.
“Esses espaços ainda são excludentes. Ir ao teatro, por exemplo, não é um hábito culturalmente enraizado no Brasil. Eu, como professora do ensino médio, quando pergunto em sala quem já foi ao teatro, geralmente só três ou quatro alunos levantam a mão. É algo distante para a maioria”, argumenta.

“A escola pode fortalecer a expressão artística dos alunos com eventos culturais, em que alunos cantam, dançam, desenham, etc., bem como abrir suas portas para a apresentação dos artistas da comunidade em que se insere. Por meio dessas práticas, o contato com a arte fica mais significativo e essas vivências contribuem para os estudantes poderem aproveitar mais efetivamente tudo o que a arte tem para oferecer”, assim argumenta o professor e membro da secretaria de educação Gustavo Henrique.
O docente cita também iniciativas das escolas públicas como visitas a teatros, cinemas, espetáculos e museus como propostas de fomento a cultura desde a escola. Tais atividades fazem parte do planejamento pedagógico obrigatório nas escolas do Brasil, pela Lei nº 12.287, de 2010, que alterou a LDB para garantir que o ensino de arte seja um componente curricular obrigatório.
“A cultura é o alimento do espírito na formação integral do ser humano. Ela deve ser transversal, presente em todos os processos de ensino, de formação e de produção do conhecimento. Não se pode ensinar História, ou mesmo Ciências da Natureza, sem considerar a dimensão cultural e artística, o qual é uma expressão essencial da humanidade, assim como a política e a religião”, opina Helder Nogueira, secretário executivo de educação do Estado.

Entendendo a relação de não-separação entre arte e educação no processo formativo humano, o Ministério da Educação (MEC) coordena o Pacto Nacional pela Superação do Analfabetismo e Qualificação da Educação de Jovens e Adultos (Pacto EJA).
O projeto reforça o letramento cultural para as diferentes etapas da vida que se tem acesso à educação. Conforme anunciado pelo Governo, a iniciativa visa garantir aos cidadãos de diferentes territórios o direito de ler, escrever e participar da vida cultural e política.
Ao Vida&Arte, o ministério destaca em nota: “O Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) distribui obras clássicas e contemporâneas para estudantes da Educação Básica — incluindo a EJA —, visando estimular o gosto pela leitura, ampliar o repertório cultural e favorecer o letramento literário”.
“As coleções contemplam gêneros e autores diversos, nacionais e estrangeiros, alinhados à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e à perspectiva de valorização da pluralidade cultural brasileira. Essas ações consolidam o esforço nacional pela alfabetização como direito social e cultural, reafirmando que o acesso à leitura e à produção simbólica é parte constitutiva da cidadania”, complementa a nota.