
A nova versão do Plano Diretor de Fortaleza, lei básica da política urbana, foi alvo de críticas e de elogios, mas no geral trouxe grandes mudanças consideradas progressistas em relação à norma vigente, de 2009. No entanto, especialistas e movimentos sociais temem que a Câmara Municipal de Fortaleza (CMFor) altere o projeto. Parte do medo vem das próprias alterações sofridas pelo Plano Diretor vigente — além dos incontáveis relatos de vereadores sugerindo mudanças sensíveis.
Após seis anos de atraso na atualização, prevista para 2019, o projeto do Plano Diretor Participativo e Sustentável (PDPS) aumentou a proteção do verde da Cidade, expandiu as zonas sociais e trouxe mecanismos de redução de desigualdade, conforme mostrou reportagem especial do O POVO+.
A penúltima discussão antes da aprovação ocorreu na Conferência da Cidade, evento de três dias no qual representantes da sociedade civil aprovaram ainda mais zonas protegidas — dentre elas uma proteção integral à floresta do Aeroporto, alvo de fortes impasses, e novos projetos sociais — como a promessa de estudos sobre uma tarifa zero no transporte público da Capital.
Foram vitórias, consideram membros de entidades ambientais e de habitação. Por outro lado, estes mesmos representantes mostraram-se apreensivos quanto aos resultados, pois já pensavam na etapa posterior à Conferência: o Legislativo.
“Eu pessoalmente ainda vejo pontos a melhorar no Plano, mas acho importante alertar que o problema maior será a aprovação na Câmara Municipal”, diz Renato Pequeno, professor do Instituto de Arquitetura, Urbanismo e Design da UFC e coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação (Lehab).
O caminho do Plano Diretor até a aprovação
A apreensão, conforme o professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), não é infundada. Justifica-se pelo histórico da Câmara de alterações em favor do mercado imobiliário, da baixa aderência dos vereadores à discussão do projeto e de declarações da bancada atual com críticas às últimas mudanças ocorridas na Conferência.
“Infelizmente, diante da baixíssima participação dos vereadores nas audiências públicas e nos debates que tiveram o Plano Diretor como tema, é difícil fazer uma análise (prever eventuais mudanças). Fica o temor de que se repita o ocorrido em 2008, quando o Plano foi bastante alterado, viabilizando índices ainda mais generosos ao setor imobiliário e da construção civil”, argumenta Renato.
Criou-se uma expectativa social, uma quase certeza, de que o projeto será modificado. Restaria saber no quê e em qual proporção. Em meio ao temor de que “tudo se perca” nos segundos finais após décadas de gritos, a pressão popular volta os olhos aos vereadores, postura que pode ou não fazer a diferença nas decisões que, agora, só cabem ao Legislativo.

O histórico da Câmara Municipal é de alterações no Plano Diretor em favor do mercado imobiliário de Fortaleza, conforme avaliação de arquitetos e urbanistas ouvidos para esta reportagem.
A visão baseia-se no levantamento de Marcelo Mota Capasso, professor da UFC, e Renato Pequeno, responsável por demonstrar que o PDPFor de 2009 recebeu 61 emendas de zoneamento, até 31 de janeiro de 2020 — todas elas enquanto a norma já estava em vigor.
Do total, 27 emendas tratam de limites ou parâmetros das Zonas, sendo quatro alterando áreas consideráveis da Macrozona de Proteção Ambiental. As demais alterações se referem a terrenos menores, das quais destacam-se os 18 aditivos que implementam a Outorga Onerosa do Direito de Construir. O instrumento autoriza construções mais altas que o permitido mediante pagamento.
Números de alterações no Plano Diretor de 2009
Conforme Pequeno, o estudo trata de mudanças “no varejo” do Plano Diretor. Ou seja, pequenas alterações feitas aos poucos (ou em conjunto) em áreas específicas.
“Por exemplo, a borda entre uma Zona de Ocupação Moderada (ZOM) e uma Zona de Proteção Ambiental (ZPA). O que eles faziam era incluir essa quadra, que era de proteção ambiental, como zona de ocupação moderada para construir lojas lá”, exemplifica o professor, que completa: “São mudanças que atendem a interesses específicos”.
O estudo de Marcelo e Pequeno cobre as mudanças “no varejo” até 2020. No entanto, levantamento do Quintau Coletivo apontou 23 Projetos de Lei Complementar (PLCs) com foco em reduzir o zoneamento ambiental de áreas de Fortaleza. Destes, nove foram aprovados e outros 11 ainda tramitavam em 2024, ano de apuração do estudo da organização.
Já no ano eleitoral, somente em uma única sessão (17 de dezembro de 2024), a Câmara aprovou a retirada ambiental de 16 áreas verdes de Fortaleza, em cinco projetos diferentes. A geometria das zonas foi mapeada com exclusividade pelo O POVO+.
Somadas a essas “mudanças menores”, porém constantes, há as ditas alterações “no atacado” do Plano Diretor. Esses instrumentos não apenas modificaram pequenas partes do PDPFor de 2009, como contrariaram todo o sentido original dele, conforme Fernanda Mattos, arquiteta, urbanista e membro do Campo Popular do Plano Diretor.
Dentre as principais modificações ao PDPFor, Renato e Fernanda citaram a criação das Zonas Especiais de Dinamização Urbanística e Socioeconômica (Zedus) na Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Luos), de 2016.
“Ali foi uma mudança no atacado, porque você pega uma grande área da cidade. De maneira irregular foi criado um novo zoneamento, que garantiu uma série de direitos ao setor imobiliário”, diz Pequeno.
A arquiteta Fernanda cita ainda a liberação de terrenos em Zeis de Vazio a cada ano em que o instrumento não é aplicado. Outro caso, chamado por ela de “escandaloso”, é o da regulamentação da Outorga Onerosa de Alteração de Uso de Solo, que permite utilização do terreno para uma finalidade diferente da originalmente prevista.
Ainda que gerais, essas mudanças também miram áreas e interesses específicos, segundo a visão de Renato Pequeno. “Outorgas onerosas têm localização. Estão na parte leste da cidade, salvo raras exceções. Estão nas áreas de maior atratividade do mercado, onde concentram-se os empreendimentos imobiliários”, observa.
Grandes mudanças no Plano Diretor de 2009
Para Fernanda Mattos, “esses são somente alguns exemplos, mas são diversos os casos que revelam o quanto essas alterações viabilizaram a efetivação de transações imobiliárias e a diversificação de produtos imobiliários em detrimento da efetivação de uma cidade socialmente mais justa e ecologicamente mais equilibrada”.
Segundo ela, alterações ao plano podem até ocorrer, em casos de necessidade extraordinária. “Mas deverá ser assegurado a participação popular nas tomadas de decisão e garantido que tais modificações sejam em prol do atendimento às necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas”, completa.
A este discurso, há um ponto a ser considerado. Todas essas mudanças se referem a legislaturas passadas. A bancada atual assumiu somente em 2025, no último ano de discussão do Plano Diretor.
Os vereadores têm um comportamento distinto e já se posicionaram favoráveis a medidas “progressistas” como a proteção de áreas ambientais. Mesmo assim, a apreensão segue sobre o que esses parlamentares podem “demonstrar” do Plano atual. Por quê?

Os vereadores eleitos em 2024 já chegaram a defender pautas ambientais da capital cearense. Uma votação em questão se refere à retomada de uma área ambiental, cuja proteção havia sido retirada no fim do ano eleitoral. A proposta de retirada partiu do vereador Luciano Girão (PDT) e o terreno está localizado no bairro Manoel Dias Branco.
Era promessa de campanha do atual prefeito Evandro Leitão (PT) a volta desse zoneamento em específico e, com articulação, a proteção foi de fato retomada com uma margem folgada de votos favoráveis. Reportagem do O POVO+, à época, mostrou como se posicionou cada um dos parlamentares no pleito.
Pouco depois, Evandro enviou outros vetos a áreas desprotegidas no ano anterior, pedindo retomada ambiental pela própria casa legislativa que as extinguiram. Criou-se uma expectativa de que as propostas fossem votadas com a mesma rapidez e resultados da primeira. No entanto, as mensagens chegaram à Comissão Especial — Matérias que Alterem o Plano Diretor (CE-PDDU) e por lá ficaram.
Questionado na época, Benigno Júnior (Republicanos), presidente da Comissão, revelou “não ter prazo” para levar as matérias ao Plenário, devido a ponderações de colegas vereadores. Ele também sinalizou a vontade de “realizar visitas nos locais (alvos das leis), para dar um parecer maior”, ainda que as propostas do prefeito já fossem baseadas em parecer técnico ambiental da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma).
Ao mesmo tempo em que pedidos de proteção estavam parados, solicitações de retirada de proteção avançaram e foram enviados a Plenário pela mesma Comissão da Câmara. Foi o caso da flexibilização Zona de Interesse Ambiental (ZIA) da Sabiaguaba, que alterou o Índice de Aproveitamento (AR) da área, permitindo maior número de construções.
Após pressão popular, o projeto foi aprovado com emenda limitando o prejuízo. O aditivo restringiu a mudança apenas a áreas que já possuíam construções consolidadas; firmou exigências como a não produção de resíduos perigosos; e vetou projetos de engenharia que não adotem práticas de reuso de água, reciclagem, dentre outras Soluções Baseadas na Natureza (SBN).
Sobre essa diferença entre a prioridade de cada projeto, Benigno alega que a mudança da Sabiaguaba se referia à alterações na Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos) e não diretamente ao Plano Diretor de 2009, como as demais propostas. Esse foi o critério para encaminhá-la, segundo o vereador. A Luos, vale lembrar, é um instrumento que regulamenta o Plano Diretor.
Fonte de preocupação de entidades e movimentos sociais quanto ao legislativo atual é a ausência de grande parte dos vereadores nas reuniões e audiências de discussão do PDPS. Relatos de pelo menos cinco representantes destes grupos narram a presença de “três ou quatro” vereadores nas audiências para montagem da minuta. Os demais não foram vistos.
Sobre esta questão, Benigno Júnior disse ter ele mesmo comparecido a sete das oito audiências. “Minha assessoria esteve em todas. Alguns vereadores não foram, mas suas assessorias estavam”, justifica. Para o presidente da Comissão do Plano, a presença ou não é um papel individual de cada parlamentar.
Benigno disse ter comunicado ao presidente da Câmara dos Vereadores, Léo Couto (PSB), a sugestão de uma “assessoria técnica” para auxiliar os vereadores em dúvidas e pontos da proposta.
Mas o que dizem os próprios parlamentares? Mesmo antes do projeto chegar à Câmara, alguns já se posicionavam sobre alguns pontos do novo Plano. Declarações de parlamentares indicam intenções de “balancear” o ambiental com o econômico. Outros foram mais diretos e sinalizaram simpatizar com a versão anterior à votada na Conferência da Cidade, pela população - esta com menos zonas de proteção ambiental.

A Conferência adicionou 173 emendas ao projeto, sendo uma das mais significantes a expansão do zoneamento ambiental da Floresta do Aeroporto, berço de Mata Atlântica e uma das poucas florestas remanescentes em Fortaleza.
Essa proteção é significativa pois a área é alvo de fortes interesses, inclusive do Governo do Estado, aliado ao prefeito Evandro. O órgão estadual responsável pelo licenciamento da área, a Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace), autorizou desmatamento no local para construções futuras, o que foi revertido por esses mesmos órgãos após vistoria técnica — e muita resistência popular.
Para completar, a Floresta ganhou proteção integral na Conferência da Cidade. A minuta inicial deixara de fora da proteção boa parte do terreno, inclusive a poligonal prevista para a obra da Fraport, empresa do Aeroporto de Fortaleza.
Alguns vereadores indicaram — particularmente — preferir a versão do Plano anterior à Conferência, ou seja, sem a proteção integral da Floresta. Essa visão foi defendida, por exemplo, pelo próprio Benigno Júnior, presidente.
“Foi a proposta que foi enviada pela Prefeitura, era um misto de uso sustentável com parte de preservação de área pública, o que nunca ocorreu na cidade. Mas isso tudo vai ser debatido”, disse ele à coluna Vertical do O POVO+, do jornalista Carlos Mazza.
Outros defendem a proteção, como Gabriel Biologia (Psol), Adriana Gerônimo (Psol) e Mari Lacerda (PT). Esta última comentou justamente a apreensão que envolve as possíveis alterações da CMFor:
“É muito ruim que a sociedade tenha uma compreensão de que a Câmara Municipal vai piorar o Plano Diretor. O que é que a sociedade espera da Câmara Municipal de Fortaleza? Nós temos que ter uma preocupação com a moral e a conta dos nossos vereadores”, disse, também à Vertical.
Todas essas são indicações que justificariam o “medo” em torno da Câmara. Mas, na prática, quais as expectativas e o que deve acontecer com o Plano Diretor no Legislativo?

O Plano Diretor chegou à Câmara em 29 de outubro de 2025, na versão da Conferência. O intuito do Legislativo e do Executivo é aprovar a norma antes do recesso de fim de ano, nos últimos dias de dezembro.
O projeto foi levado à Comissão do Plano Diretor. Benigno Júnior explica o trâmite: após a escolha de um relator, a Comissão espera para apreciar o parecer dele; pode ser ou não pedido vista; no devido prazo, o projeto vai a Plenário para votação da Casa; no caso de emendas, a proposta volta para apreciação da Comissão.
“Já na próxima semana (primeira semana de novembro de 2025) vamos reunir a Comissão para apreciar o parecer do relator”, comunicou Benigno.
O trâmite do Plano Diretor na Câmara de Fortaleza
O presidente defende que o projeto dose economia e sustentabilidade. “Uma cidade sustentável e mais justa, acho que esse é o papel do plano, de mediar desigualdades. Mas também nós não podemos deixar de olhar o crescimento econômico e o emprego”, finaliza.
Esse discurso é semelhante ao do relator escolhido, Bruno Mesquita (PSD), também líder da gestão Evandro na Câmara Municipal de Fortaleza. “Eu acho que a harmonia tem que prevalecer no Plano Diretor. A gente não pode impedir a cidade de crescer. A cidade tem que crescer. Mas a gente também tem que ter o cuidado e o zelo de manter o meio ambiente, é importante para as nossas gerações futuras", considerou.
Para os representantes de movimentos, é difícil prever com certeza o que pode ser mudado ou não na Câmara. Fernanda Mattos, do Campo Popular, disse acreditar que “que a questão ambiental e a questão das Zeis de Vazio serão os pontos neurais da disputa”, devido às divergências nas declarações de vereadores. “Mas não me surpreenderia se outros pontos fossem questionados”, acrescenta.
Renato Pequeno foi mais direto e disse esperar alterações no zoneamento, nos índices urbanísticos e nos instrumentos que envolvam negócios imobiliários e valorização. “(Espero) Supressão ainda maior de zonas de preservação ambiental e viabilização de usos predatórios em setores ambientalmente frágeis."
No âmbito do Legislativo, o vereador Benigno reforça a “legitimidade da Câmara em propor emenda de alteração, de modificação, de aprimoração do texto”, o que é um fato. O processo de elaboração do Plano Diretor prevê o Legislativo como agente final que, por sua vez, é regido por regras internas que preveem votações e proposições com base no regime democrático.
Porém, forças podem interferir mais ou menos neste processo. Uma delas, conforme apontou o colunista Henrique Araújo do O POVO+, se refere a empreiteiras, que teriam comunicado ao Paço Municipal insatisfações com pontos do novo Plano Diretor. Essas reclamações chegariam à Câmara, na qual o líder do Governo defende harmonizar interesses.
A outra força é o povo, que elegeu cada um dos parlamentares ali presentes. A depender da mobilização, o resultado pode ou não ser diferente.
Renato Pequeno diz acreditar na pressão da sociedade, ainda que estime grandes mudanças na Câmara. “Não fosse isso, a gente não teria a cidade que a gente tem”, destaca. Para ele, os problemas urbanos se dão especialmente “porque a pressão popular muitas vezes é impedida”.
Ele cita como positivo o exemplo da própria Conferência. “Uma sociedade civil muito bem organizada. A gente vê um Campo Popular muito menos dependente de uma assessoria técnica. Eu acho que a gente vive um momento atual na Cidade no qual as lideranças comunitárias aprenderam a ter direitos na luta”, comemora.
Fernanda Mattos, do próprio Campo Popular, defende que a discussão na Câmara, “como qualquer disputa política, dependerá do grau de mobilização, sensibilização e capacidade de pressão em assegurar sua manutenção ou alteração, visando a avançar — ou regredir — no conteúdo e nos mapas do plano”.
A urbanista completou, sobre o Legislativo: “Seria péssimo se desconsiderarem a forte deliberação e apelo popular que alguns pontos aprovados tiveram na plenária da Conferência. Seria um afronto direto aos interesses da população, menosprezando o esforço empregado pela sociedade civil nesse processo de revisão e a legitimidade do espaço da Conferência enquanto espaço de excelência da instância participativa”.

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Série de reportagens aborda as tensões sociais, econômicas e ambientais do processo de montagem da norma básica de planejamento urbano de Fortaleza. Anos de reavaliação revelam sérias problemáticas urbanas e desigualdade social