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Crimes na Capitania: morte matada foi na pólvora e nas lâminas
Reportagem Seriada

Crimes na Capitania: morte matada foi na pólvora e nas lâminas

Num contexto cheio de violências como era o Ceará de 250 anos atrás, os autos de querelas que restam guardados contam apenas três casos de assassinatos, cometidos em episódios brutais. Apesar de proibidas pelo reino, as armas estavam sempre nas mãos e atiçavam conflitos que a Justiça não conseguia alcançar plenamente
Episódio 3

Crimes na Capitania: morte matada foi na pólvora e nas lâminas

Num contexto cheio de violências como era o Ceará de 250 anos atrás, os autos de querelas que restam guardados contam apenas três casos de assassinatos, cometidos em episódios brutais. Apesar de proibidas pelo reino, as armas estavam sempre nas mãos e atiçavam conflitos que a Justiça não conseguia alcançar plenamente
Episódio 3
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Morte matada não foi história que chegou fácil aos autos de querelas. Mesmo que a Capitania do Ceará Grande tenha sido terra de muitas violências nos séculos XVIII e XIX, brutais ou banais, os livros de denúncias oficiais hoje disponíveis contam muito pouco de casos daquela época.

As vastas distâncias entre vilas e comarcas, a dificuldade de se deslocar, o acesso à justiça — que também “andava a passos de cavalo” — e até os medos de represália quando precisavam acusar alguém teriam aumentado a subnotificação dos fatos.

Há somente três registros com denúncias formalizadas, dentre 168 autos folheados um a um pelo O POVO. Chamavam de "homocídios", "assassínios", "crimes de tirar a vida" no português da época. Se as mulheres foram mais agredidas em crimes sexuais, as vítimas dos assassinatos foram três homens.

 

Os três homicídios nos autos de querelas

 

Em um dos casos, uma mulher é apontada como uma das acusadas — citada inclusive como a mais violenta, a que atiçou os outros dois executores no mesmo crime.

Nos três casos, a crueldade recorreu às lâminas e à pólvora para derrubar a rixa ou saciar a vingança. Cada um com seu nível de drama e barbárie. Em nenhum deles houve a dúvida sobre quem eram os executores. Só em um deles houve uma prisão confirmada, segundo os autos.

 

 

Cutelo, catana, parnaíba e vara de ferrão mataram o fazendeiro na ribeira do sertão

Era 4 de abril de 1807, na Ribeira de Mombaça, na vila de Campo Maior. Onde hoje é o município de Quixeramobim, Sertão Central cearense. Mataram o fazendeiro Luiz Marreiros de Mello e a notícia correu vento, pela repercussão. O homem recebeu vários golpes de cutelo, de catana e de parnaíba pelo corpo.

São os nomes de três facas tradicionais dos rincões nordestinos, peças nas lidas de roça e de gado e arma de muitos casos de desavença e desfecho fatal antigos na região. A atrocidade teve ainda estocadas com uma vara de ferrão.

Foi quase um esquartejamento, pela quantidade de golpes desferidos, no relato de uma testemunha: "ensima do peito direito, e huma cutilada no pescosso, e mais outra na cabeça, e outra mais nas cadeiras,e mais outra no calcanhar, e mais outra cutilada sobre a mão direita que lhe cortaram dois dedos que ficaraõ pendurados, e tudo fora feito com catana e parnaiba".

Província do Ceará com um detalhe da Planta da Villa de Fortaleza(Foto: Acervo Prefeitura de Fortaleza)
Foto: Acervo Prefeitura de Fortaleza Província do Ceará com um detalhe da Planta da Villa de Fortaleza

Os acusados foram uma mulher e dois homens: Maria Manoela, que era casada com Pedro Muniz, e Thomás, o irmão dela. Ela e o marido são descritos como "indios misturados"; o irmão seria "caboclo ou misturado". A indicação de raça ou etnia era sempre destaque nas querelas.

Os matadores também moravam em Campo Mayor, na localidade João de Barro. A motivação apontada foi a de "huma rixa velha" com o fazendeiro. "Andauaõ agoardando e expreitando naquele caminho por onde sabiaõ que ele auia pasar". Havia ameaças anteriores até decidirem pela tocaia.

Naquele dia do crime, Marreiros havia ido "ajuntar hums gados grosos que lhe deviaõ na Ribeira de Mombaça". E se abrigou na casa de um sargento-mor conhecido seu, Pedro de Abreu Pereira. O fazendeiro "se axaua rezando o ofício da Senhora da Conceipçaõ e bem descuidado do que lhe auia de acontecer". Tentou se armar com a espingarda quando percebeu a invasão do local, mas já era tarde.

Os documentos descrevem Manoela como a que mais instigava o momento do crime. Ficou "na porta com a uara de ferraõ", gritava para que "picasem" a vítima com "cutiladas e estocadas de catana e parnaiba" e dizia ao marido e a seu irmão para que "não o deixassem uiuo porque homem morto não falaua".

A querela foi registrada somente cinco meses depois, no dia 4 de setembro de 1807, pela viúva de Luiz Marreiros, Izabel Francisca do Espírito Santo. O fazendeiro tinha lhe deixado "honerada de des filhos menores".

Houve o pedido para que a ordem de prisão chegasse às comarcas vizinhas "do Piauhj, cidade de Oeiras, de Saõ Luiz do Maranhaõ e de Pernambuco e todos os mais reinos de Portugal e suas conquistas". Mas não se sabe se as milícias alcançaram os criminosos.

 

A vingança de morte dos crioulos pelas chicotadas dadas na escrava Isabel

Na Vila Nova d'el Rei, onde hoje é Guaraciaba do Norte, região da Serra Grande (da Ibiapaba), Lourenço Paiva Sales foi assassinado numa emboscada, às seis da tarde do dia 13 de fevereiro de 1808. O crime aconteceu na mata de um sítio chamado Boca da Picada. E lhe desferiram pelo menos sete golpes com uma ponta da faca parnaíba. Nem houve tempo para que reagisse.

 

Populações das vilas do Ceará no século XIX

 

Os executores foram os irmãos Anastácio e Matheos, crioulos forros, pelo menos o primeiro descrito como escravo. A vítima era homem branco, casado, mas não era seu "dono". A vítima estava sendo espreitada havia dias. Anastácio tirou "a faca de ponta parnaiba que tinha no cós das siroulas". Matheos tinha uma espingarda nas mãos, mas é dito que não tenha efetuado disparo com ela.

Dias antes, Lourenço estava no sítio Picada, que era de sua mãe e onde morava com sua mulher, no preparo de uma farinhada, quando teria castigado Isabel, negra cativa da casa. Deu chicotadas na escrava por alguma falha não detalhada nos autos. Mas era Isabel a mulher de Anastácio, que "tomou aquilo muito em sentimento" e quis se vingar.

Foi assim que Urçula Rodrigues Freire, a viúva de Lourenço, descreveu no registro da querela, em audiência ocorrida na vila de Sobral, em 20 de maio daquele ano. Quando o auto foi formalizado, dois meses depois dos fatos, Anastácio já encontrava-se preso pelo crime, na cadeia da vila de Fortaleza.

No exame de corpo de delito, uma das testemunhas contou da violência das "sete firidas", sendo "duas n'a pa esquerda", "huma no brasso esquerdo entre huma cana, e outra do dito brasso, e outra em sima da maõ esquerda", "duas sobre o peito esquerdo do comprimento de dois dedos, e huma no souaco direito do comprimento de quatro dedos". Dizia "que cortaraõ carne e couro" e "que naõ eraõ mortais", mas que "todas elas mostrauaõ ser feitas com faca de ponta".

Não há notícias sobre o acusado Matheos e as penas para Anastácio.

 

 

A mando do coronel, o tiro de bacamarte, a estocada nas costelas e a prata roubada do facão do morto

Outro crime "de tirar a vida", no dia 25 de outubro de 1810, na localidade Curralinho, na vila de Icó. O enredo foi uma mescla dos dois casos anteriores: mais um fazendeiro morto em uma nova tocaia e também com a autoria de dois irmãos, pardos, a mando e proteção do pai deles. E a motivação veio de outra "rixa velha". Mas a repercussão foi maior porque este pai dos matadores era um coronel conhecido na região.

Carta da Capitania do Ceará em 1818(Foto: Acervo Prefeitura de Fortaleza)
Foto: Acervo Prefeitura de Fortaleza Carta da Capitania do Ceará em 1818

A vítima foi João Martins de Melo, sargento-mor e fazendeiro. Os autores do crime foram os irmãos Narcizo e João, filhos do coronel Manoel Martins de Melo. Vítima e executores tinham o mesmo sobrenome, mas não há informação na querela se eram parentes diretos.

O fazendeiro vinha naquela manhã "montado em seo caualo" acompanhado de um amigo. Fôra verificar cabeças de gado mortas — o segundo semestre é tempo de seca. Foi quando cruzaram com Narcizo e João, também a cavalo.

Foi Narcizo que saltou de sua montaria com o bacamarte na mão e disparou "sem mais demora e sem razaõ". O disparo fez "hum grande estrondo e cujo eco se ouuio em grande destancia". Era arma de fogo comum na época. Cano curto, largo, coronha reforçada, que disparava pólvora socada. Explodia o alvo.

 

Violência da Capitania no século XVIII

 

O ferimento descrito: "hum tiro no ombro esquerdo procurando ao pescosso que lhe quebraraõ com duas balas que estauaõ os buracos das ditas acompanhados delas trinta carossos de munissao". Como se não bastasse, o homem “já em terra morto com o tiro”, e João tirou o “traçado” (facão) da cinta da vítima e “deo huã estocada nas costelas debaixo do brasso da parte direita”.

Outro detalhe mais ousado da cena do crime: os irmãos matadores levaram o facão do fazendeiro para mostrá-lo ao pai coronel, como um troféu. Depois, quando a viúva recebeu o pertence, notou a falta da prata que havia na ponta do cabo do facão.

A morte teria sido prenunciada em várias ameaças. O fazendeiro já havia requisitado "segurança de uida" ao juiz antecessor . No dia anterior, o coronel pai dos executores teria pedido "um bocado de pólvora" a um capitão seu conhecido, "com a desculpa que era para matar carcarás". A firula foi parte do plano.

O auto de querela foi feito dois meses depois, em 7 de dezembro, na própria vila do Icó. A viúva não sabia escrever, por isso fez o sinal de uma cruz no documento, o que era comum. Às vezes, até os juízes não sabiam escrever nomes nem nada.

O enterro do fazendeiro foi no cemitério da igreja matriz do Riacho do Sangue. Os filhos do coronel fugiram e não houve registro de algum dos três tenha sido preso.

 

 

Criação de vilas tentou organizar povoação da Capitania, mas violência foi problema

Eram aqueles autos de querela um clamor da população por justiça na Capitania do Ceará Grande. Nos séculos XVIII e XIX, a violência era endêmica. Espalhava-se, mas os registros eram muito menos do que os fatos. A certeza era de uma grande subnotificação.

A realidade foi muito pior do que a descrita nas audiências com o ouvidor geral e corregedor e seu escrivão, já que os registros se concentraram em alguns núcleos urbanos. Indígenas e negros mortos ou mutilados quase nem ganhavam menção nos papéis oficiais. 

ParaTodosVerem: Gustavo Cabral é um homem branco, de cabelos escuros e camisa listrada. Sorridente, ele olha diretamente para a câmera contra um fundo cinza liso(Foto: Acervo pessoal / Lattes)
Foto: Acervo pessoal / Lattes ParaTodosVerem: Gustavo Cabral é um homem branco, de cabelos escuros e camisa listrada. Sorridente, ele olha diretamente para a câmera contra um fundo cinza liso

O professor Gustavo Cabral, diretor da Faculdade de Direito da UFC e pesquisador da história do direito no período colonial, descreve que a colonização brasileira se alicerçou sob um ambiente hostil e violência extrema. "A história do homem é uma história de violência, e num período como o colonial (no Brasil) isso foi muito efetivo."

Na análise de 66 querelas do século XVIII, entre 1779 e 1793, o defensor público e pesquisador José Valente Neto encontrou registros em oito das 17 vilas que formavam a capitania naquele momento (chegaram a 19).

A maioria deles distribuídos em três dessas vilas: Fortaleza (24 autos-36,36%), Aracati (16 autos-24,24%) e Aquiraz (13 autos-19,69%). A informação consta em sua tese de doutorado em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Violência concentrada nas vilas mais importantes.

A povoação da capitania ainda estava no começo. Entre 1700 e 1750 surgiram as vilas de São José de Ribamar do Aquiraz (1713), Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção elevada à categoria de vila em 1726 (fará 300 anos em 2026), Nossa Senhora da Expectação do Icó (1738), Santa Cruz do Aracati (1748).

Na segunda metade do século XVIII: Vila Real de Messejana (1758), que era aldeamento indígena; Vila Nova de Arronches (hoje Parangaba); Viçosa Real (Viçosa do Ceará) e Vila Real do Soure (atual Caucaia), em 1759; Vila Real do Crato e Monte-Mor-o-Novo-da-América (hoje Baturité), em 1764; Sobral (1773); Granja (1776); Campo Maior (hoje Quixeramobim), em 1789; Vila Nova d'El Rei (Ipu) em 1791.

No século XIX ainda foram criadas: São Bernardo das Russas (atual Russas) em 1801; São João do Príncipe (Tauá) em 1802; Vila de Jardim (1814) e Lavras da Mangabeira (1816).

“Destas, as atuais Caucaia, Messejana, Parangaba, Viçosa, Baturité e Crato foram criadas a partir de aldeamentos indígenas, sendo denominadas pelos documentos da época como ‘vilas de índios’. As demais eram chamadas de ‘vilas de brancos’”.

A informação é do livro "A Urbanização do Ceará Setecentista: as vilas de Nossa Senhora da Expectação do Icó e de Santa Cruz do Aracati", do pesquisador Clóvis Ramiro Jucá Neto, professor de arquitetura e urbanismo da UFC, resultado de sua tese de doutorado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Já eram os anos finais do Império no Brasil. Num censo feito em 1808, com informações dos vigários e dos capitães-mores, havia 125 mil moradores no Ceará Grande. Em 1813, outro censo indicou população de 145 mil.

A ausência de registros em todas as vilas pode ser atribuída à falha na administração da justiça e à dificuldade de locomoção até as comarcas para o registro das denúncias.

Angelica Sampaio é pesquisadora de casos antigos da violência contra a mulher, de registros desde o século 18. Autora do livro 'A violência contra mulheres em autos de querela dos séculos XVIII E XIX no Ceará'(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Angelica Sampaio é pesquisadora de casos antigos da violência contra a mulher, de registros desde o século 18. Autora do livro 'A violência contra mulheres em autos de querela dos séculos XVIII E XIX no Ceará'

A socióloga Angélica Sampaio, pesquisadora dos autos de querela no recorte da violência cometida contra as mulheres, destaca que um ouvidor precisava viajar longas distâncias, muitas vezes "a pé, de jumento, no ombro, às vezes numa carroça".

O mesmo poderia ser necessário para querelantes. A mãe da moça vitimada por rapto, estupro e aleivosia de uma pessoa próxima da família, em 1779, precisou se deslocar de Barra do Sitiay (hoje Banabuiú), até Aquiraz para o registro da querela.

A falta de cadeias públicas seguras poderia gerar medo do denunciante, fugas e impunidade. O sertão era chão difícil de ser percorrido, de perseguir e encontrar alguém

Valente conta que a proibição de armas de fogo ou de ponta (punhais, facas, cutelos) foi ordem expedida de Portugal para cumprimento na Capitania. Eram ferramentas para o controle social, “mas sua aplicação variava conforme a posição social dos sujeitos. Pobres, negros e mestiços eram geralmente punidos, enquanto as elites conseguiam licenças”. Exibiam, inclusive, como "instrumentos de prestígio e distinção".

 

 

Mesmo proibidas, armas em punho e nos cós atiçavam a violência bruta

A morte passou perto em várias histórias de violência bruta nestas terras coloniais do Ceará Grande, denunciadas formalmente nos autos de querelas do século XVIII. Os escrivães nem sempre eram detalhistas ou as vítimas nem sempre contavam tudo, mas quando as minúcias se desenhavam nas letras a bico de pena, o horror beirava os crimes e confirmavam que as armas, mesmo proibidas pelas leis do reino, estavam sempre nos cós, nas bainhas, e que a Justiça era ainda rudimentar.

Em 6 de julho de 1780, viajando pelo "certam do Mosoro a buscar humas cabessas de gado" (então pertencente à comarca da Paraíba), na localidade conhecida como Ilha, Antônio Ferreira dos Santos, crioulo forro, casado, homem simples, levou duas facadas profundas na cabeça. Uma delas "tam horrenda que lhe cortou athé o casco". A descrição é explícita: "com couro e carne cortada que penetrava dentro ao casco e por ambas se lhe viaõ palpitar o cerebro ou os miolos". Os autos só classificaram como "ferimentos e contusões".

 

21 livros com autos de querela



Antônio escapou, mas com cicatrizes imensas. Nessas dores, e mesmo sendo "um rústico e ignorante" (diga-se, que sabia ler e escrever), pôde formalizar sua querela no Ceará Grande, de onde eram todos os envolvidos.

Ele, que morava nas vargens do Jaguaribe, fez o registro na vila do Aracati, já em 27 de março de 1871. Contou que foi José da Cruz, cabra, que lhe esfaqueou, a mando de Domingos Francisco Pereira, "por rixa que trazia com o suplicante". Os querelados moravam em Mata Fresca, na vila de Aquiraz.

Uma denúncia mais direta de crime de tentar matar foi feita pelo viúvo João Gularte da Silveira, branco. Em 26 de março de 1785, "as des oras poco mais ou menos", ele estava "casando humas marrecas na lagoa xamada Mororós" quando sofreu uma tentativa de homicídio.

Segundo contou, Leandro Pereira, cabra, lhe deu um tiro de espingarda na perna esquerda "junto ao joelho ficando dentro a mesma bala", "entre o couro e os nervos". A arma teria sido obtida por Bento Pires, casta de cabra e de índio. Seria mais um caso de "rixa velha".

A ordem para matá-lo teria sido dada por "Manoel Joze de Miranda Henriques, e sua mai Dona Mariana Fernandes de Moura, cazada com o capitam Domingos Fernandes de Moura, moradores na fazenda da
Furquilha ou Serra das flores". Mas estes, curiosamente, não aparecem como querelados pela vítima.

Gularte disse que o tiro "por mercê de Deos o naõ matâra". O auto de querela foi formalizado em 28 de maio do mesmo ano em Aquiraz. O viúvo, Leandro e Bento, todos eram moradores na Ribeira do Figueiredo, naquela vila. No ato da denúncia, Leandro já estava preso na cadeia local havia três dias.

Expedito Eloísio Ximenes, pesquisador dos Autos de Querelas(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Expedito Eloísio Ximenes, pesquisador dos Autos de Querelas

As armas estavam sempre em mãos, mesmo impedidas pelas Ordenações Filipinas, que regiam as punições a crimes e desobediências. Manoel Pinto denunciou, em 1782, que o pardo Lourenço Ferreira andava armado com pistola e "armas de facas", curtas, proibidas "em total desprezo das leis de sua magestade".

O sociólogo Marcos Alvarez, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), diz que o entendimento da violência como um "problema do estado" ganhou mais efeito prático no século XIX, com o esforço para sistematizar a Justiça.

A criação das vilas tinha essa intenção de "boa ordem civil", segundo o pesquisador Clóvis Ramiro porque muitas delas chegaram a servir de "cidades de refúgio e azylo a malfeitores".

O POVO manuseou documentos originais e transcrições realizadas por pesquisadores(Foto: CLÁUDIO RIBEIRO)
Foto: CLÁUDIO RIBEIRO O POVO manuseou documentos originais e transcrições realizadas por pesquisadores

Até uma simples briga por um roçado acabava em caso sério. Em março de 1793, na vila de Fortaleza, o cabra Pedro da Silva foi querelado por roubos e estragos na roça do pardo Alexandre Rodrigues Torres, no sítio da Mungubeira, no Cocó, onde trabalhava.

Ao ser cobrado pelo malfeito, Pedro "se pôs em armas" com um bacamarte. Mas a arma falhou "por naõ pegar fogo" e ele se valeu de "huma faca de ponta", proibida. Com a lâmina, Pedro fez quatro feridas em Alexandre. E jorrou "copioso sangue"

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