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Ilhas de calor: quem vive na Fortaleza que queima?
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Reportagem Especial

Ilhas de calor: quem vive na Fortaleza que queima?

Em uma Cidade onde o concreto avança e o verde desaparece, o calor extremo castiga os que menos podem se proteger. Entenda como a desigualdade se revela também na temperatura das ilhas de calor

Ilhas de calor: quem vive na Fortaleza que queima?

Em uma Cidade onde o concreto avança e o verde desaparece, o calor extremo castiga os que menos podem se proteger. Entenda como a desigualdade se revela também na temperatura das ilhas de calor
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Dez horas sob o sol escaldante, carregando 63 quilos de fardos de água em um isopor. Essa é a rotina diária de Maria Marilene Lima, 44, vendedora ambulante há dois anos no Centro de Fortaleza.

Casada e mãe de dois filhos — um deles autista, que depende de cuidados constantes —, ela tira o sustento de casa do seu vai e vem pelas ruas pouco arborizadas nas proximidades do Mercado Central.

Maria Marilene Lima é vendedora ambulante no Centro de Fortaleza e precisa estar diariamente exposta ao sol para ter renda(Foto: Bianca Nogueira/ Especial para O POVO )
Foto: Bianca Nogueira/ Especial para O POVO Maria Marilene Lima é vendedora ambulante no Centro de Fortaleza e precisa estar diariamente exposta ao sol para ter renda

“Essa blusa aqui [de manga longa] é a única coisa que me protege do sol. Mas já passei mal uma vez, do calor. Fiquei tonta, quase desmaiei”, rememora. Parar, no entanto, não é uma opção.

Marilene e outros vendedores ambulantes, entregadores, descarregadores de mercadoria e catadores compõem uma categoria de trabalhadores que sentem queimar na pele os efeitos das Ilhas de Calor Urbanas (ICU) e da diminuição constante da cobertura vegetal nativa.


 

Expostos aos efeitos nocivos do calor, esses trabalhadores percebem, no cotidiano, o que pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC) vêm registrando em estudos: “A cidade tá cada dia mais quente.”

Os malefícios de uma cidade mais quente são coletivos, mas a população pobre sofre mais com os efeitos do calor devido a uma série de desigualdades na distribuição de áreas verdes e de recursos. Em Fortaleza, o calor tem endereço, cor e classe social.

 

 

O mapa da cidade que queima

Ilhas de Calor Urbanas (ICU) são o efeito climático mais evidente do processo de urbanização, explica o doutor em Geografia e professor do Instituto de Ciências do Mar (Labomar/UFC), Fábio Matos.

O fenômeno resulta da transformação do ambiente natural para a formação das cidades e é caracterizado pelo contraste de temperatura entre as áreas urbanas e as zonas de vegetação natural ao redor, menos urbanizadas.

Espacialização das médias horárias do Índice de Calor (HI) para o mês de outubro de 2019(Foto: Antonio Ferreira Lima Júnior, lávia Ingrid Bezerra Paiva Gomes, Maria Elisa Zanella)
Foto: Antonio Ferreira Lima Júnior, lávia Ingrid Bezerra Paiva Gomes, Maria Elisa Zanella Espacialização das médias horárias do Índice de Calor (HI) para o mês de outubro de 2019

Segundo Fábio, dois fatores principais agravam a formação dessas ilhas: a expansão imobiliária e o desmatamento. “A expansão imobiliária ocorre, em muitos casos, sem critérios adequados de uso e ocupação do solo, preservação ambiental e distribuição equilibrada das áreas verdes, resultando em uma urbanização desigual e excludente", aponta.

Bairros com grande volume de áreas edificadas são os principais pontos das ICUs. Em geral, as regiões com maior densidade de edifícios e menor cobertura vegetal apresentam temperaturas mais elevadas.

Em Fortaleza, os bairros mais quentes costumam ser também os mais pobres, onde o adensamento urbano ocorre de forma desordenada e o verde desaparece rapidamente.

Um estudo realizado em 2024 por pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) monitorou o Índice de Calor (HI) em bairros da capital e revelou uma forte disparidade na exposição ao estresse térmico, determinada pelas condições socioeconômicas.

O artigo, intitulado O Índice de Calor (HI) na cidade de Fortaleza, apontou que os bairros Álvaro Weyne, Vila Velha e De Lourdes registraram as maiores temperaturas durante o estudo. Vila Velha e De Lourdes foram os únicos locais onde as medições ultrapassaram o nível considerado de perigo.

Esses bairros se caracterizam por escassez de vegetação e alta densidade populacional, com média de 8.150 habitantes por quilômetro quadrado e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) muito baixo.

 

Localização dos bairros

 

 

Já os bairros Cocó, Edson Queiroz e Bairro de Fátima apresentaram maior conforto térmico com mais frequência no período analisado. Para os pesquisadores, ficou claro que a Unidade de Conservação (UC) Parque Estadual Parque do Cocó é o “ponto mais fresco” da cidade, o que reduz o estresse térmico e os níveis de HI, sendo um importante instrumento urbanístico para o conforto climático da Capital.

O Bairro de Fátima, por sua vez, reúne características que favorecem a amenização térmica, como espaços abertos arborizados, lotes de tamanhos variados, vias mais largas e verticalização intermediária de uso residencial.

Nas demais áreas de maior renda, embora predominem edificações altas e pouca arborização, os impactos do calor são atenuados por melhores condições de moradia, uso de ar-condicionado e infraestrutura urbana mais adequada.

 

 


Já nas periferias, a escassez de árvores e ventilação, somada à falta de acesso a recursos que poderiam amenizar o calor, intensifica os efeitos das ilhas de calor urbanas. O resultado é uma cidade que, como um todo, fica mais quente a cada ano — mas o calor pesa de maneira desigual sobre a população.

É como imaginar Fortaleza como um corpo sob um sol forte. Enquanto a maioria das áreas — densamente construídas e com pouco verde — veste roupas escuras e apertadas, retendo o calor e sofrendo estresse térmico, o Parque do Cocó e o Bairro de Fátima funcionam como pulmões verdes, grandes guarda-sóis que oferecem sombra e alívio térmico para quem vive por perto.

Para o professor Fábio Matos, “o calor extremo na Cidade não é apenas um problema climático, mas também uma questão de justiça social e ambiental”. Os mais ricos, observa ele, são os que mais contribuem para o aquecimento urbano; paradoxalmente, são os que menos sofrem com seus efeitos.

 

 

Quando o calor é desigual

Para o professor do curso de Ciências Ambientais do Labomar (UFC) e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema-UFC), Marcelo Freire Moro, as ações necessárias para reduzir o calor concentram-se na proteção do patrimônio ambiental, algo que não vem sendo aplicado com real compromisso em Fortaleza.

Nas emendas da Câmara de Fortaleza (CMFor) ao Plano Diretor, por exemplo, 25% estavam destinadas à flexibilização de Zonas de Proteção Ambiental (ZPAs) ou de Zonas de Interesse Social (ZIS), como Zeis de Favela e de Vazio. As emendas alteram as proteções ambientais e sociais para garantir mais espaços construíveis na Cidade.

Marcelo Freire Moro é um homem branco de cabelo curto e castanho(Foto: Reprodução/ Acervo pessoal)
Foto: Reprodução/ Acervo pessoal Marcelo Freire Moro é um homem branco de cabelo curto e castanho

“A Cidade tem destruído seus ecossistemas nativos em um ritmo acelerado. O avanço da urbanização tem impactado severamente as áreas que, ecologicamente, ajudam a resfriar a cidade”, comenta.

De acordo com levantamento do O POVO+, entre dezembro de 2024 e janeiro de 2025 foram excluídas 16 áreas verdes da capital cearense. Até novembro deste ano, apenas uma dessas exclusões havia sido revogada.

Em setembro de 2025, um novo caso de supressão de vegetação reacendeu o debate sobre a fragilidade da proteção ambiental na Cidade diante dos efeitos da crise climática. Cerca de 40 hectares de Mata Alântica foram desmatadas no entorno do Aeroporto Pinto Martins para instalação de um Centro Logístico.

Para Marcelo, a intervenção na chamada Floresta do Aeroporto é particularmente alarmante, pois a área fazia parte dos últimos 16% de áreas remanescentes e dos últimos 10% de florestas de Fortaleza.

A obra, embora autorizada pela Superintendência Estadual de Meio Ambiente (Semace), apresentava uma série de irregularidades, conforme denúncia do vereador Gabriel Biologia (Psol). Entre as falhas apontadas está uma suposta fraude no estudo fitossociológico exigido pela Lei Federal da Mata Atlântica.

Segundo o parlamentar, o documento expedido pela Semace classificava a floresta como em estágio inicial ou médio de sucessão ecológica, o que permitiria a supressão da vegetação. No entanto, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) apontou que a área apresentava árvores de grande porte e características de estágio avançado, o quer tornaria o desmatamento ilegal.


 

Em outubro de 2025, o Ibama contestou o parecer concedido pela Superintendência Estadual, que chegou a suspender temporariamente a licença, mas liberou retomada parcial da obra no mês seguinte.

O Ministério Público do Ceará (MPCE) ainda apura possíveis fraudes no licenciamento. Enquanto isso, a área devastada se tornou ponto central no debate sobre o novo Plano Diretor Participativo e Sustentável de Fortaleza.

O documento inicial excluía a área de Mata Atlântica do mapa de proteção ambiental. Após pressão de movimentos e especialistas, a região foi reintegrada durante a Conferência das Cidades, mas a decisão final caberá à Câmara Municipal.

Vistoria analisa área desmatada do Aeroporto de Fortaleza e suspende obras após irregularidades detectadas(Foto: Reprodução/ Superintendência Estadual do Meio Ambiente do Ceará (Semace))
Foto: Reprodução/ Superintendência Estadual do Meio Ambiente do Ceará (Semace) Vistoria analisa área desmatada do Aeroporto de Fortaleza e suspende obras após irregularidades detectadas

Tanto a empresa Frapor, responsável pelo empreendimento, quanto o governador Elmano de Freitas (PT), e o ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, defenderam a necessidade de um Centro Logístico em Fortaleza, alegando utilidade pública do empreendimento.

Marcelo Moro, entretanto, alerta que diante do cenário atual, “destruir esses últimos ambientes resulta em uma perda catastrófica de biodiversidade (fauna e flora) e cobertura vegetal que afeta muito mais diretamente quem não pode se esconder no conforto de um ar-condicionado”.

Já Leina Mara, catadora de material reciclável e coordenadora da Rede de Catadores do Estado do Ceará, não sente que os debates sobre áreas verdes alcancem verdadeiramente quem precisa estar diariamente exposto ao calor, como os catadores.

Leina Mara é uma mulher negra de cabelo liso, curto e preto. Na imagem, ela está de braços cruzados ao lado de materiais recicláveis coletados(Foto: Reprodução/ Acervo pessoal)
Foto: Reprodução/ Acervo pessoal Leina Mara é uma mulher negra de cabelo liso, curto e preto. Na imagem, ela está de braços cruzados ao lado de materiais recicláveis coletados

“O sol está muito quente, e os catadores que trabalham expostos ao tempo sofrem bastante, muitos sem acesso nem à água para se hidratar. Por causa do calor extremo, vários estão deixando de coletar durante o dia e passando a trabalhar à noite", alerta.

"Quando falamos da situação no Estado, é ainda mais grave. Muitos companheiros continuam trabalhando em lixões a céu aberto, dividindo espaço com urubus e enfrentando condições totalmente insalubres.”

 

 

Floresta do Aeroporto ficou até 6 °C mais quente após desmatamento

Uma pesquisa recente da UFC identificou elevação de até 6 °C na temperatura da superfície após o desmatamento na região da Floresta do Aeroporto, área de Mata Atlântica parcialmente desmatada para obras do Centro logístico.

Foram registradas máximas de até 36 °C em pontos da superfície desmatada(Foto: Reprodução/Elisa Maria Duarte (Prodema/UFC))
Foto: Reprodução/Elisa Maria Duarte (Prodema/UFC) Foram registradas máximas de até 36 °C em pontos da superfície desmatada

O estudo, realizado pela pesquisadora Elisa Maria Duarte, graduada em Economia Ecológica e mestranda em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema/UFC), utilizou técnicas de geoprocessamento e imagens de satélite captadas em setembro de 2024 e setembro de 2025.

As análises mostraram um aquecimento significativo nas zonas onde houve supressão da vegetação, especialmente nas partes hoje ocupadas por solo exposto.

Nos mapas elaborados, as áreas que antes apareciam em tons de azul — correspondendo a temperaturas mais amenas, em torno de 28 °C — deram lugar a faixas alaranjadas e vermelhas, que representam superfícies acima de 32 °C.

Elisa Maria Duarte é mulher de pele parda e cabelo curto castanho(Foto: Reprodução/ Acervo pessoal)
Foto: Reprodução/ Acervo pessoal Elisa Maria Duarte é mulher de pele parda e cabelo curto castanho

Segundo Elisa, “em 2024, as temperaturas máximas chegavam a cerca de 30 °C. Em 2025, alcançaram 36 °C — um aumento de aproximadamente 6 °C nas áreas mais quentes, principalmente onde não há mais vegetação ou onde o solo foi coberto por asfalto".

A pesquisadora explica ainda que a temperatura da superfície é medida por sensores de satélite, que detectam a radiação térmica infravermelha emitida por diferentes tipos de cobertura — como solo, telhados, asfalto, vegetação e corpos d’água — permitindo identificar variações associadas à perda de cobertura vegetal.

O projeto de mestrado que Elisa pretende desenvolver nos próximos anos quer usar o mesmo método em todos os 121 bairros da Capital cearense para comprovar se há, ou não, uma relação entre as temperaturas e questões socioeconômicas da Cidade.

Para ela, o caso do aumento detectado no aeroporto pode ser um micro exemplo de como a temperatura em Fortaleza se comportou ao longo dos anos de supressão da mata nativa.

 

 

O que está em jogo entre a economia e a preservação do meio ambiente?

Após as denúncias de desmatamento da Floresta do Aeroporto para o complexo logístico da Aerotrópolis Empreendimentos S.A, a empresa se manifestou alegando ter respeitado todos os processos regidos por lei para o início das obras.

Conforme nota enviado ao O POVO+, o empreendimento prevê a geração de 12.500 empregos diretos ao término das oito fases, todos fixos e permanentes, necessários à operação das empresas ocupantes e um investimento total previsto de R$ 1 bilhão.

Imagem ilustrativa do complexo logístico de Fortaleza(Foto: Reprodução/ Aerotrópolis Empreendimentos S.A)
Foto: Reprodução/ Aerotrópolis Empreendimentos S.A Imagem ilustrativa do complexo logístico de Fortaleza

Além da geração indireta de outros 37 mil empregos envolvendo fornecedores, transporte externo, manutenção, tecnologia, alimentação, segurança, limpeza, construção e serviços terceirizados.

A empresa estima também que o Governo do Ceará poderá arrecadar cerca de R$ 2,25 bilhões em ICMS, enquanto a Prefeitura de Fortaleza poderá receber aproximadamente R$ 10 milhões em ISS, reforçando o impacto econômico regional do complexo.

Para Fabio Sobral, professor da UFC nos cursos de Economia e no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema-UFC), a economia que despreza a natureza gera mais malefícios que benefícios.

 

Fábio Sobral é um homem branco de cabelos escuros e curtos i
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Clique na foto para acessar a entrevista na íntegra com o professor Fábio Sobral (Acervo pessoal)

"Os empregos e a floresta não podem estar em desacordo. Senão você poderia propor o seguinte: vamos aterrar o Rio Cocó, fazer uma avenida e fazer um monte de lojas ao redor, que é melhor. Não é assim. Se destrói elementos naturais, a natureza cobra um preço de volta”, diz.

O professor ainda completa: “Inclusive, pode até se tornar mais caro, trabalhando com dinheiro. Basta ver o que aconteceu e o que acontece recorrentemente no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro. Quando você não respeita a natureza, a própria economia é abalada pela destruição das condições de funcionamento do clima".

"Você retira uma floresta, o número de pessoas com problemas respiratórios aumenta. Os gastos com o Sistema Único de Saúde (SUS) aumentam com internações, pessoas morrem por poluição. Você tem aumento de casos (de doenças), inclusive de depressão pela ausência de contato com a natureza. Então, aquilo que parece favorecer a economia porque vai criar empregos, acaba saindo muito, muito mais caro."

> Confira a entrevista completa ao clicar na foto ao lado.

Para ele, certamente existem outros locais possíveis de se investir em melhorias econômicas que não sejam “sobre o cadáver de uma floresta”, também levando em consideração uma economia formada por trabalhadores sob o sol escaldante.

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