
Em cada edição da Auê Feira Criativa, a economia cearense abraça histórias de empreendedores que encontram na coletividade um caminho para resistir, criar e viver do próprio ofício.
A grande festa criada em 2018 para ocupar espaços públicos da Cidade virou uma grande feira que atrai milhares de pessoas para a Praça das Flores — símbolo da economia criativa e da força que floresce do cooperar em Fortaleza.
“Fico muito feliz de olhar para trás e ver que fomos formando uma comunidade bem engajada. Hoje temos as pessoas que frequentam; as que não frequentam, mas interagem no Instagram; pessoas que moram no Brasil todo; pessoas que trabalham e que expõem. Movemos muita energia na Cidade”, resume Mariana Marques, uma das idealizadoras da feira já consolidada na Capital.
Acesso gratuito, marcas locais e autorais, atrações musicais, programação infantil, comidinhas, bebidinhas, pets, ONGs — tudo isso e mais um pouco está lá, no coração da Aldeota, e justifica a popularidade da feira.
Unir arte, música, gastronomia e empreendedorismo autoral em um só lugar sempre foi a ambição genuína, mas gerir um evento desse porte não é tarefa fácil.
Com o sucesso, o projeto começou a atrair multidões para a praça — e precisou passar por uma pausa em 2025 para repensar o formato e manter a essência da Auê.
“Parece um problema bom, né? Ter de repensar o formato porque tem cliente demais. Mas não foi. Foi muito doloroso”, relata Mariana.
“Não foi uma decisão que nós tomamos, a decisão nos tomou. Nas vésperas da feira de março, pós-Carnaval, tínhamos uma conta imensa para pagar e entendemos que, se não mudássemos o formato, iríamos continuar sendo apenas uma ‘festa grátis’.”
“E o que sustenta a feira como feira, como uma opção de negócio com saudabilidade, é a aposta do expositor em querer expor, a venda que é feita nos stands deles, a venda das bebidas nos bares participantes, o engajamento nas oficinas. De repente, ou eu parava tudo ou ia assumir uma dívida impagável”, explica a publicitária.
Mariana observou que “muitas pessoas frequentavam a praça para ver os shows, levando sua própria bebida, e não consumiam na feira”. Além disso, era preciso adequar a estrutura para receber bem tanta gente naquele espaço.
“Foi doloroso repensar, mas não existe controle sobre uma multidão. O resultado era que nenhum valor que a gente investisse seria suficiente para cuidar bem das pessoas. Nenhum número de mesas, cadeiras, gerador, banheiro químico, nada seria suficiente. Precisamos repensar o tamanho, mesmo, até para continuar sendo respeitosos com a vizinhança, que nos acolhe com tanto amor, e com a praça, que é o personagem principal dessa história.”
A retomada veio em nova configuração, com gestão compartilhada e maior participação dos expositores: “As mudanças que vivemos, as maiores, eu diria, dizem respeito não à feira propriamente dita, mas ao que acontece em torno dela”.
“Estamos sempre mexendo na programação de palcos, de opções para se divertir, da disposição dos elementos na planta para se ajustar aos espaços da praça. Ela tá sempre em movimento”.
“Ultimamente estamos focando em uma programação musical mais serena, com música de muito boa qualidade, pra que as pessoas possam ter sossego para fazer as compras”, detalha a idealizadora.
“Acho que o segredo está aí. Estamos numa tentativa de fazer dar certo, e essa tentativa é completamente focada na colaboração, em um organograma mais horizontal, no cooperativismo, na escuta... Eu estou otimista.”
O que nasceu como um movimento independente para reunir e levar ao público fortalezense o trabalho de artistas, artesãos, produtores e coletivos, tornou-se referência para o Brasil.
Mariana acredita na Auê como “um modelo de muita coisa”.
“De como ocupar o espaço público com responsabilidade, compromisso e afinco; de como juntar gente em torno de ideias; de economia criativa como um patrimônio que precisa ser valorizado, porque é a economia da cultura, que diz sobre quem nós somos, pois é o que criamos; de como sonhar e realizar com um capital pequeno.”
Nesse novo capítulo, a criatividade da feira encontra a cooperação e celebra parcerias que traduzem, na prática, o que é a Auê: economia criativa, cooperativismo, coletividade, colaboração, crescimento, oportunidade.
Uma delas é a parceria com o Sicredi, primeira instituição financeira cooperativa do Brasil.
“O Sicredi não só olhou para a Auê com visão de cooperar, mas como oportunidade de negócio, e isso me fez brilhar os olhos. Entendeu quem somos e também que somos um espaço muito valioso para os negócios que a instituição oferece”, afirma Mariana.
Da oferta de maquinetas com taxas mais acessíveis ao apoio em crédito e educação financeira, a parceria amplia as possibilidades dos expositores e reforça o caráter coletivo da iniciativa.
Para a publicitária, trata-se de um encontro natural.
“O que eu pensei na hora? Que a gente se parecia, como negócio. Então o entendimento foi imediato e a gente resolveu seguir juntos, eles sendo um apoio importante para a feira, e a gente abrindo as portas para que aproveitem não só o evento, mas a força que temos junto ao coletivo de expositores, para construirmos vínculos juntos.”
Com quase uma década de atuação, a Auê Feira Criativa já não é apenas vitrine de artistas e pequenos empreendedores.
Tornou-se símbolo de como a economia criativa pode gerar renda, transformar territórios e democratizar oportunidades.
“A Auê é brilhante e tem feito muito pela Cidade. Feito circular um dinheiro que poderia estar preso em grandes players para o pequeno empreendedor. Isso oxigena a economia, democratiza. É pra isso que a gente trabalha.”

Germinar pequenos negócios resulta no florescimento humano que sustenta as raízes dessa grande árvore que é o empreendedorismo.
E foi na delicadeza dos vasos pintados à mão e no cuidado com as plantas que Kátia Bastos começou a cultivar o Jardim da Ka — negócio que nasceu pequeno, mas que ganhou espaço para crescer na Auê Feira Criativa.
“Meu primeiro contato com a Auê foi em 2021, durante a pandemia, quando ainda fazia poucos jarrinhos pintados e trabalhava mais com plantinhas prontas. Fui selecionada para participar e, desde então, nunca mais deixei de estar presente”, conta.
“A feira sempre foi muito boa para o meu negócio, tanto financeiramente, quanto na divulgação. Foi através dela que ganhei mais visibilidade e seguidores, e até mesmo vendas posteriores, porque muitas vezes o contato que começa ali continua depois.”
Além de ser uma bela vitrine para os produtos feitos artesanalmente por Kátia, o contato com o público proporcionado pela feira transformou a vida pessoal da empreendedora.
“Eu sofria de ansiedade e estar nesse espaço coletivo me ajudou demais. Estar ali, conversando com clientes, criando vínculos, recebendo carinho... tudo isso melhorou a minha autoestima.”
“A gente faz amizade conversando com as pessoas que ficam ao lado da gente. Eu trabalho online, então a feira é o momento em que os clientes vão me encontrar, que a gente pode dar um abraço, um carinho. Isso me faz muito bem, sabe?”, narra a empreendedora.
“Até minha família se envolveu. Quando eu não posso ir, meu marido e meus filhos vão no meu lugar. Eles também eram tímidos, mas hoje atendem o público com mais confiança. É um processo que começou na pandemia e mudou a gente como pessoas”, completa.
Com o negócio se transformando, Kátia já se prepara para novas mudanças como a revisão do nome da marca. Ela vê no cooperativismo uma possibilidade de sonhar ainda mais alto.
“É muito importante que uma instituição financeira como essa abrace um projeto cultural como a Auê, porque dá chance para que pequenos empreendedores possam crescer de verdade”, reflete.
“Pode parece algo distante da realidade para alguns mas, na prática, isso significa sonhos que os pequenos empreendedores podem alcançar através de uma confiança, de um crédito, de a pessoa poder investir mais em mercadorias, até para fazer um estoque ou mesmo para investir no próprio negócio.”
Esse crescimento coletivo é, justamente, o que move a organizadora da feira, Mariana Marques. Para ela, a Auê é um espaço de circulação de produtos criativos, mas também de encontros que alimentam redes afetivas e econômicas no Ceará.

O cooperativismo nasceu em 1844, na Inglaterra, como resposta às dificuldades impostas pela revolução industrial. De lá para cá, tornou-se um sistema econômico e social baseado em princípios universais que seguem atuais.
“O primeiro é a adesão voluntária e livre. Ninguém é obrigado a entrar ou permanecer em uma cooperativa”, explica Nicédio Nogueira, presidente do Sistema OCB/CE (Organização das Cooperativas do Brasil no Ceará).
A gestão democrática é outro pilar: “Todas as decisões são discutidas e decididas democraticamente, seja por gestores ou em assembleia com todos os associados”, afirma.
A participação econômica dos membros, a autonomia e independência, a educação, a intercooperação e o interesse pela comunidade completam os fundamentos que regem as bases desse movimento.
Na visão de Nogueira, esses preceitos encaixam-se naturalmente no universo da economia criativa.
“O cooperativismo e a economia criativa têm tudo a ver. A economia criativa representa oportunidade de expansão do cooperativismo e de desenvolvimento de novos negócios”, aponta.
Ele cita como exemplo grupos de teatro que podem se organizar como cooperativas, vendendo espetáculos e garantindo renda de forma coletiva.
Esse modelo, segundo o presidente do Sistema OCB/CE, amplia a capacidade de atuação de empreendedores criativos e culturais.
“O princípio básico do cooperativismo é a colaboração entre as pessoas. Na área artística e social, o cooperativismo tem tudo a ver. São atividades coirmãs que podem conviver perfeitamente ou uma complementar a outra.”
Para Nogueira, a união fortalece tanto os pequenos negócios quanto a percepção da sociedade sobre o papel das cooperativas.
“No Ceará, o cooperativismo é muito associado ao setor agropecuário, mas abrange todas as atividades econômicas. Temos um déficit grande na área cultural, social e educacional. Mas o cooperativismo se insere muito bem nesses campos”, avalia.
Ele também chama atenção para a diferença entre o empreendedorismo individual, comum em setores como o artesanato, e o potencial do empreendedorismo coletivo.
“Sozinho, o artesão não consegue atender a grandes encomendas. Mas em uma cooperativa, com 20, 30 ou 50 artesãos trabalhando juntos, é possível suprir essa necessidade. O cooperativismo dá sustentabilidade ao empreendedorismo coletivo.”

Na Auê, uma frase curta e direta circulava em camisas: “O que garante a fartura é a partilha”. O lema, tão próximo do espírito da feira, também atravessa a lógica do cooperativismo.
Segundo ela, a parceria com a Auê abre espaço para apoiar negócios autorais de maneira concreta.
“Estar presente na feira nos permite apoiar diretamente os empreendedores, promovendo visibilidade, conectando-os a oportunidades e oferecendo orientação financeira adequada à realidade de cada um.”
O diferencial, para Line, está na forma de relação. “No Sicredi não temos clientes: temos associados. Todos fazem parte da instituição, participam das decisões e compartilham dos resultados.”
Ao olhar para a feira, ela reconhece o reflexo desse princípio: “Na Auê vemos empreendedores trocando experiências, apoiando uns aos outros e criando uma rede de colaboração que fortalece a todos”.
“Estamos estruturando iniciativas de educação financeira e queremos expandir nossa presença em feiras e eventos, levando soluções que ajudem mais pessoas a desenvolver seus projetos de vida.”
“A economia criativa valoriza a produção autoral e fortalece o empreendedorismo local. O cooperativismo tem esse mesmo DNA: gerar impacto social e econômico a partir da união de pessoas”, afirma Line Mara Lins, gerente do Sicredi Ceará, a primeira cooperativa de crédito do Brasil.
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Reportagem seriada traz um roteiro das feiras de Fortaleza e os destaques de cada uma delas