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Publicado 01:30 | fev. 23, 2020 Tipo Notícia Por Henrique Araújo

Policiais escondem rostos no motim de 2020 (Foto: fco fontenele) — Foto: fco fontenele Policiais escondem rostos no motim de 2020

O pátio do quartel está cheio às 19 horas da quinta-feira, 20. Fabiano passa e cumprimenta Eduardo (nomes fictícios) com um tapinha nas costas. Policiais militares, ambos usam balaclava e vestem preto da cabeça aos pés. Apesar de decisões judiciais que vedam a greve e os jogam na ilegalidade, estão de braços cruzados desde a terça-feira passada, quando um grupo de mulheres bloqueou a entrada do 18º batalhão, no bairro Antônio Bezerra.

"Esse é aí é o mais jovem da turma", diz cabo Eduardo apontando o colega de farda. "Tem 18 anos, tá voando. Aquele ali é o Samuel, tem 27. É o melhor motorista de viatura que eu conheço. Comparado com essa turma, eu, que tenho 32, já sou um velho."

Era verdade. A maioria dos PMs reunidos na unidade tem no máximo 25 anos, é recém-ingressa na corporação, muitos concluíram ensino superior e estão ali apenas de passagem, como um trampolim para um emprego que remunere mais, relata o militar. "Esses caras são da Polícia hoje, mas logo vão sair porque têm ambição e querem algo melhor", avalia Eduardo. "A carreira militar não garante boas condições."

Para ele, esse é o perfil dos agentes de segurança que resolveram confrontar o Estado e a hierarquia militar e interromper os trabalhos em protesto contra a proposta de reajuste salarial acordada entre seus representantes e o Governo do Estado. A mensagem com a nova tabela salarial para a categoria foi enviada para a Assembleia Legislativa (AL-CE) no mesmo dia em que o 18º foi tomado de assalto.

De lá para cá, o número de ocupantes cresceu. No local, há homens, mulheres e quase duas dezenas de crianças, que brincam num pula-pula montado nos fundos da unidade. Naquele dia, o segundo de paralisação, os jovens policiais estão nervosos. "Acabamos de receber uma informação de dentro da PM que o comando enviou composições para tomar o quartel", fala Eduardo.

Um helicóptero da Coordenadoria Integrada de Operações Aéreas (Ciopaer) sobrevoa o quartel, dirigindo o canhão de luz para o epicentro do motim e iluminando a rua Anário Braga, àquela altura coalhada de carros com pneus esvaziados pelos policiais.

Pergunto ao PM se, em caso de intervenção do Batalhão de Choque, haverá resistência. "Não tenha dúvida disso", responde, com olhos injetados e vermelhos pela falta de sono e estresse. "Não vamos entregar nada."

À menção ao rumor de retomada do 18º, rapidamente as tropas insubordinadas se organizam. Formam-se correntes, que distribuem entre os homens as armas disponíveis numa das salas. Escopetas, escudos, cassetetes. Mulheres perfilam-se na entrada e começam uma oração. "Estamos prontos para resistir", enfatiza Eduardo.

Antes disso, Felipe puxa a manga da minha camisa. Estamos dentro do quartel, ao lado de um oratório. De rosto coberto por uma touca ninja que lhe deixa à mostra apenas os olhos miúdos, pede para falar sobre demandas. É soldado. Os vencimentos mensais totalizam pouco mais de R$ 3,2 mil. Casado, estava acompanhado da esposa e da filha de seis anos, sentadas com um prato de cuscuz com ovo equilibrado no colo.

O PM conta que, naquele momento, o principal ponto da pauta era a anistia e o aumento na diferença de salários na mudança de patente. "A gente espera muito, e, quando passa para cabo ou sargento, o ganho é pequeno, de R$ 200. Não compensa", calcula. Por que não deixa a Polícia? "Eu amo o que faço", devolve.

Um dos parlamentares que estiveram no 18º para negociar uma saída à crise, o senador Major Olímpio (PSL-SP) diz que os agentes amotinados são "uma legião de jovens inexperientes, que não têm avaliação profunda de que vão se arrebentar e serão condenados como criminosos militares".

Militar, Olímpio admite saber do que fala. "Eles estão sendo influenciados por policiais com experiência, alguns que alcançaram o mandato legislativo, não vão perder nada e ainda vão usar a salvaguarda da condição legislativa", critica.

De acordo com o senador paulista, que se manteve reunido por mais de uma hora com lideranças dos policiais, o cenário encontrado no quartel "é extremamente perigoso". E completa: "Há moças muito novas, com crianças de colo, esposas de policiais. Estão ali dormindo no chão e dizendo nós vamos ser vitoriosos'. Nosso sentimento é de dó".

NOMES

A pedido dos policiais militares citados na reportagem, O POVO omite todos os nomes verdadeiros dos soldados. Para fins de narrativa, recorremos a nomes fictícios

A Polícia Militar e sua encruzilhada

Nos 15 anos que mantenho interlocução com policiais - seja como repórter ou pesquisador - percebo constantemente neles um sentimento de orgulho tanto por pertencer à instituição quanto por prestar um relevante serviço ao público. Os eventos lamentáveis ocorridos na semana passada colocam em questão, da parte dos amotinados, o grau de incorporação dos valores e práticas exigidas à atividade policial.

Não é tolerável agentes estatais fechando estabelecimentos comerciais, impondo o medo e atacando seus próprios colegas de trabalho, ou seja, adotando métodos usuais dos criminosos aos quais combatem cotidianamente. Como esses profissionais retornarão às ruas após terem cometido atos tão desatinados? Qual é o nível de responsabilidade que tais pessoas possuem em relação ao serviço público? Será que elas realmente estão à altura da corporação que representam?

Lutar por melhorias nas condições de trabalho e pelo reajuste salarial é algo inerente à classe trabalhadora. Não se está, em momento algum, desconsiderando a pauta de reivindicações da categoria. É preciso, contudo, manter-se dentro dos limites éticos e morais que o cearense acredita que um militar deva possuir.

Se o problema reside na formação, que se gaste mais tempo capacitando os novos policiais e reforçando a pauta de conteúdos tanto teóricos quanto práticos quando a poeira baixar. A lição que fica é que a qualidade do efetivo deve imperar sobre a quantidade. Uma escola de formação de bons soldados talvez seja mais eficaz que ampliar o contingente em demasia. Há tempo ainda para diminuir os danos. Rever as atitudes e encarar o ocorrido não é demérito para ninguém. Faz parte do amadurecimento profissional e humano. Quanto aos que foram flagrados cometendo ilícitos, o Governo do Estado não pode se furtar de adotar posição mais rigorosa, fortalecendo os controles sociais e disciplinares visando não apenas coibir manifestações de pensamento mas, principalmente, práticas que agridam a população e manchem a reputação da própria Polícia Militar, cuja história centenária deve ser motivo de orgulho e não de temor. Há tempo para que encontremos uma solução. E que a instituição possa sair ainda mais fortalecida e aprimorada diante de tudo isso.

Ricardo Moura é jornalista, sociólogo e doutor em Sociologia

Uma polícia insubordinada

Quarenta e oito horas depois do início da paralisação de policiais militares no Ceará, ouvi de um soldado de 22 anos: "Se o comando não respeitar a tropa, a gente não respeita o comando".

Perguntei então se considerava que a hierarquia militar fora quebrada e a Constituição desrespeitada quando os agentes decidiram parar de trabalhar, passando a tomar veículos de assalto na rua e esvaziando pneus de carros. De celular na mão, o rosto iluminado pela tela branca, ele respondeu: "Sim, nós sabemos disso. Nossa greve é ilegal, mas é legítima".

Segundo a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), mais de 300 Inquéritos Policiais Militares (IMPs) foram instaurados. Cinco PMs foram afastados do trabalho por se manifestarem favoravelmente à paralisação nas redes sociais. Antes do início do protesto, ao menos uma decisão judicial impedia expressamente os militares de suspenderem as atividades.

Sociólogo e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), César Barreira avalia que o momento é preocupante. "Temos um cenário nacional favorável, com mudança do Estatuto do Armamento, aumentando circulação de armas de fogo, estímulo à impunidade de policiais e a filosofia da defesa pelas próprias mãos", avalia.

E há o ambiente local, continua Barreira, no qual "um motim de pessoas encapuzadas e armadas" assaltam o Estado e capturam patrimônio público. "É uma situação diferente de uma greve considerada ilegal, com o agravante de que houve um acordo", considera.

Para o professor, no entanto, existe um pano de fundo ainda mais agudo que se evidencia nesta paralisação de PMs: uma polícia politizada. "A paralisação tem uma forte conotação política, mais até que em 2011", aponta. "Há um capital em disputa que tem uma relação direta com o voto, que entra como uma moeda de troca. Isso dá uma fortaleza grande ao movimento. É um voto garantido. Um voto da polícia colado ao da família."

Questionado se via características comuns entre a paralisação de 2011 e a de agora, Barreira afirmou que há continuidades, como "a tomada de quartéis, uso das viaturas para bloqueios e o impedimento da circulação". Mas uma novidade desponta. "O dado mais claro é a relação forte entre Polícia e política", conclui. (Henrique Araújo)

Acompanhe a cobertura da paralisação dos policiais

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