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Petróleo na Foz do Amazonas: contrariando a ciência e os povos
Reportagem Seriada

Petróleo na Foz do Amazonas: contrariando a ciência e os povos

Ibama libera exploração de petróleo em área de impacto máximo a 20 dias da COP30. Organizações indígenas e ambientalistas entram na Justiça para anular licença que contradiz compromissos climáticos do País
Episódio 5

Petróleo na Foz do Amazonas: contrariando a ciência e os povos

Ibama libera exploração de petróleo em área de impacto máximo a 20 dias da COP30. Organizações indígenas e ambientalistas entram na Justiça para anular licença que contradiz compromissos climáticos do País Episódio 5
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O som na foz do rio Amazonas não é de silêncio. É o estrondo da pororoca, o encontro violento de águas doces e salgadas que reverbera pela maior bacia hidrográfica do planeta. É o barulho da vida nos manguezais, um berçário que sustenta a pesca e protege a costa.

Sob a superfície turva, onde a luz não chega, pulsa um ecossistema recém-descoberto e já ameaçado: um sistema de recifes de corais e esponjas que ocupa uma área de 9.500 km².

Para as comunidades indígenas e quilombolas que há séculos habitam essas margens, esses sons são a própria existência. Mas um novo barulho, metálico e insistente, ameaça abafar todos os outros: o da perfuratriz de uma plataforma de petróleo.


 

Em 20 de outubro de 2025, faltando exatos 20 dias para a 30ª Conferências das Partes (COP30) pelo Clima em Belém (PA), o Ibama emitiu a licença que a Petrobras aguardava há mais de uma década. A autorização permite perfurar um poço exploratório no bloco FZA-M-59, a 175 km da costa do Amapá e a 2.880 metros de profundidade, em uma área que a própria empresa classificou como de "impacto ambiental máximo" em seu Estudo de Impacto Ambiental (EIA).

Embora a licença seja válida por cinco meses e permita apenas pesquisa exploratória, a decisão soou como um tiro de largada para uma nova fronteira fóssil na Amazônia. A perfuração deve começar imediatamente, com a sonda já posicionada no local desde agosto.

O timing expõe a principal contradição do Brasil atual: a de um país que se projeta como líder climático no palco mundial enquanto, em casa, aposta em um modelo energético que a ciência do clima pede para ser abandonado.

A decisão foi celebrada pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e pela presidente da Petrobras, Magda Chambriard, como uma conquista da soberania energética nacional. Mas a reação da sociedade civil foi imediata e contundente.

Organizações ambientalistas, lideranças indígenas e cientistas denunciaram o que consideram uma capitulação ao lobby do petróleo que mancha o discurso ambiental brasileiro às vésperas do maior evento climático do mundo.

A autorização, segundo eles, não apenas coloca em risco um dos ecossistemas mais sensíveis do planeta, mas sabota a credibilidade diplomática que o Brasil busca consolidar na COP30.

 

 

Ação judicial coletiva

A reação da sociedade civil foi tão rápida, quanto categórica. No mesmo dia 20 de outubro em que o Ibama emitiu a licença, o Observatório do Clima, uma rede que reúne mais de 130 organizações socioambientais, anunciou publicamente que levaria o caso aos tribunais.

A estratégia não se limitava a contestar falhas técnicas no processo de licenciamento. As organizações preparavam um ataque jurídico em múltiplas frentes, ancorando seus argumentos não apenas na legislação brasileira, mas também no direito internacional climático.

No centro da argumentação está um parecer histórico emitido em julho de 2025 pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), o principal tribunal da Organização das Nações Unidas (ONU).

Embora o parecer não tenha força de cumprimento obrigatório, ele carrega peso político e jurídico sem precedentes: afirma que nações que não tomam "medidas apropriadas" para reduzir a produção e o consumo de combustíveis fósseis, assim como a concessão de novas licenças de exploração e os subsídios ao setor, podem ser acusadas de cometer "um ato internacionalmente ilícito".

É a primeira vez que um tribunal internacional dessa magnitude estabelece com clareza a obrigação legal dos países de cumprir os tratados sobre o clima através da redução da produção fóssil, não apenas do consumo.

"A emissão da licença para o Bloco 59 é uma dupla sabotagem", declarou Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima. "Lula acaba de enterrar sua pretensão de ser líder climático no fundo do oceano na Foz do Amazonas. O governo será devidamente processado por isso".

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva entra em contradição ao se posicionar como liderança climática, mas incentivar a exploração de petróleo(Foto: Evaristo SA / AFP)
Foto: Evaristo SA / AFP O presidente Luiz Inácio Lula da Silva entra em contradição ao se posicionar como liderança climática, mas incentivar a exploração de petróleo

A dureza das palavras reflete a percepção de que a decisão não é apenas um erro técnico ou ambiental, mas uma traição política ao discurso climático brasileiro às vésperas da COP30.

Dois dias depois, em 22 de outubro, a ameaça se concretizou. Uma coalizão formada por oito organizações ambientais, indígenas, quilombolas e de pescadores artesanais ingressou com Ação Civil Pública na 9ª Vara Federal Ambiental e Agrária de Belém, no Pará, pedindo a anulação completa do licenciamento do Bloco FZA-M-59 e a suspensão imediata das atividades de perfuração.

Na linha de frente desta batalha judicial estão atores que representam a diversidade dos territórios ameaçados pela exploração petrolífera: a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), a Comissão Nacional para o Fortalecimento das Reservas Extrativistas e dos Povos Extrativistas Costeiros e Marinhos (Confrem), o Greenpeace Brasil, o Instituto Internacional Arayara, o Observatório do Clima e o WWF-Brasil.

Juntas, essas organizações representam milhares de famílias indígenas, quilombolas e de pescadores artesanais cujas vidas dependem diretamente da saúde dos ecossistemas costeiros e marinhos da região.

O pedido central da ação é contundente: liminar para suspensão imediata de todas as atividades de perfuração, sob o argumento de que os riscos ambientais são irreversíveis e que o processo de licenciamento está eivado de vícios jurídicos e técnicos que o tornam nulo.

Além de denunciar a ausência de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas e comunidades tradicionais — obrigação prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na Constituição Brasileira — a ação aponta falhas graves na modelagem que deveria prever o comportamento do óleo em caso de derramamento.

"Não foi feita a consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas e comunidades tradicionais", explicou Suely Araújo em entrevista à Agência Brasil. "O licenciamento tem falhas de modelagem. Numa série de análises: como é que o óleo iria, para onde o óleo iria, em caso de acidentes. A licença foi concedida com fragilidades bastante gritantes na modelagem.”

Segundo as organizações autoras da ação, os dados que fundamentaram o cálculo de dispersão do óleo em caso de vazamento estariam desatualizados, ignorando informações mais recentes disponíveis desde 2024.

A estratégia jurídica é clara: demonstrar que a licença viola não apenas a legislação ambiental brasileira, mas também tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, incluindo o Acordo de Paris e a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB).

As organizações argumentam que, ao autorizar a exploração de novas fronteiras de petróleo em pleno coração da Amazônia Azul, o Brasil está trilhando o caminho oposto ao que a ciência climática recomenda e comprometendo sua credibilidade diplomática justamente quando se prepara para sediar a maior conferência do clima do mundo.

 

 

O que está em jogo: riscos ambientais e sociais

A decisão de perfurar na Foz do Amazonas coloca em risco um dos ecossistemas mais singulares e frágeis do planeta. A advertência mais contundente vem do próprio Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da Petrobras, que classifica o potencial de impacto de um vazamento na região como de "nível máximo".

A área de perfuração do bloco FZA-M-59 está situada a apenas 40 quilômetros do Grande Sistema Recifal Amazônico, um ecossistema vasto e recém-descoberto de 9.500 km² composto por corais e esponjas, cuja existência era considerada improvável em águas turvas como as da foz.

Uma das primeiras imagens do recife de corais da foz do Amazonas, no Amapá, capturadas em 2017 por um submarino durante expedição científica de pesquisadores de renomadas universidades brasileiras. A expedição foi realizada com apoio do Greenpeace(Foto: Divulgação/Greenpeace)
Foto: Divulgação/Greenpeace Uma das primeiras imagens do recife de corais da foz do Amazonas, no Amapá, capturadas em 2017 por um submarino durante expedição científica de pesquisadores de renomadas universidades brasileiras. A expedição foi realizada com apoio do Greenpeace

Este bioma único não está sozinho. A região abriga também a maior faixa contínua de manguezais do mundo, um berçário vital para a biodiversidade marinha e um gigantesco sumidouro de carbono, estocando cerca de 1,5 bilhão de toneladas de CO₂.

Esses ecossistemas são a base da subsistência de milhares de famílias de pescadores artesanais, indígenas e quilombolas, cujos modos de vida estão intrinsecamente ligados à saúde do estuário.

E os riscos não são apenas teóricos. Um estudo de modelagem de dispersão de óleo, conduzido pelo Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (Iepa) em parceria com o Greenpeace, demonstrou que um vazamento de grandes proporções não se conteria na costa brasileira.

Biodiversidade de recifes na Bacia da Foz do Amazonas, no Amapá(Foto: Divulgação/Greenpeace)
Foto: Divulgação/Greenpeace Biodiversidade de recifes na Bacia da Foz do Amazonas, no Amapá

As fortes correntes marinhas da região poderiam espalhar a mancha de óleo para os países vizinhos, como a Guiana Francesa, o Suriname e a Guiana, transformando um acidente em um desastre socioambiental de escala internacional.

O impacto direto sobre as comunidades e a biodiversidade protegida seria devastador. Pelo menos três terras indígenas, seis territórios quilombolas e 34 unidades de conservação estão na zona de alta sensibilidade e sofreriam danos potencialmente irreversíveis em caso de vazamento. A Terra Indígena (TI) Uaçá é um dos territórios que podem ser diretamente impactados.

Para os povos que habitam a região, a notícia da licença foi recebida com indignação e tristeza. A liderança indígena Luene Karipuna, em depoimento à InfoAmazonia, expressou o sentimento de abandono:

 

"É muito triste receber essa notícia hoje. É destruir e acelerar cada vez mais a crise climática que nós já vivemos. Então, nós não precisamos de mais discursos vazios. O Ibama deveria proteger a biodiversidade e o meio ambiente, mas é o primeiro a soltar a mão dos povos indígenas. O Lula é o primeiro a soltar a mão dos povos indígenas."

 

O histórico recente da indústria petrolífera no Brasil reforça essas preocupações. Dados da Agência Nacional do Petróleo (ANP), compilados pelo Observatório da Indústria do Petróleo (Oind), revelam que o Brasil registrou um recorde de 731 acidentes na exploração de petróleo no mar em 2024.

Esses incidentes resultaram em uma morte, 78 feridos graves e o derramamento de mais de 52 mil litros de óleo, um lembrete sombrio de que a atividade, mesmo com tecnologia avançada, não é isenta de falhas.

 

 

Histórico e contexto da exploração na Foz do Amazonas

A cobiça por petróleo na Margem Equatorial da Foz do Amazonas não é recente. A história dessa ambição remonta a 1963, quando foram realizados os primeiros levantamentos geofísicos na região. Desde então, a Petrobras e outras petroleiras internacionais têm tentado, sem sucesso duradouro, domar as correntes extremas e os desafios técnicos que tornam essa área uma das mais hostis para a exploração petrolífera no mundo.

Ao longo de mais de seis décadas, os riscos ambientais e a ferocidade das condições oceanográficas impediram que a exploração avançasse além de tentativas frustradas e equipamentos destruídos.

Um levantamento da InfoAmazonia, baseado em dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), revelou uma estatística alarmante: um em cada quatro poços perfurados na margem equatorial foi interrompido por acidentes mecânicos. A natureza não perdoa erros nesta região.

Primeira plataforma 100% brasileira, a P-51 produz até 180 mil barris de petróleo e 6 milhões de metros cúbicos de gás por dia(Foto: Divulgação Petrobras / Agência Brasil)
Foto: Divulgação Petrobras / Agência Brasil Primeira plataforma 100% brasileira, a P-51 produz até 180 mil barris de petróleo e 6 milhões de metros cúbicos de gás por dia

Em 1975, uma sonda da Petrobras foi completamente destruída por correntes marítimas a quase 300 km da costa do Amapá, em um incidente que marcou a memória da indústria petrolífera nacional.

Décadas depois, em 2011, outro equipamento sofreu ruptura a 126 km do continente, e a equipe teve que ser resgatada às pressas. Esses episódios não são meros acidentes isolados — são sintomas de uma região que resiste à exploração humana.

O processo que culminou na licença de outubro de 2025 teve início em 2013, quando o bloco FZA-M-59 foi leiloado na 11ª Rodada de Licitações da ANP. As gigantes internacionais BP Energy e TotalEnergies arremataram a área com grandes expectativas, mas a realidade se mostrou intransponível.

Após cinco negativas consecutivas do Ibama, citando inconsistências técnicas e riscos ambientais inaceitáveis, ambas as empresas desistiram do projeto. A Petrobras assumiu 100% da operação do bloco em 2021, herdando não apenas os direitos de exploração, mas também um processo de licenciamento profundamente problemático e controverso.

Em maio de 2023, sob a presidência de Rodrigo Agostinho, o Ibama negou categoricamente a licença à Petrobras. A decisão foi fundamentada em pareceres técnicos que apontaram "inconsistências preocupantes para a operação segura".

Comissão de Meio Ambiente (CMA) promoveu audiência pública interativa para debater sobre as potencialidades econômicas das reservas previstas de petróleo e gás na Margem Equatorial, e sobre os desafios para a garantia de condições ambientais seguras para a exploração desses recursos. Presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, em pronunciamento, à mesa(Foto: Geraldo Magela/Ag Senado)
Foto: Geraldo Magela/Ag Senado Comissão de Meio Ambiente (CMA) promoveu audiência pública interativa para debater sobre as potencialidades econômicas das reservas previstas de petróleo e gás na Margem Equatorial, e sobre os desafios para a garantia de condições ambientais seguras para a exploração desses recursos. Presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, em pronunciamento, à mesa

O órgão ambiental exigiu, entre outros requisitos, uma Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS) — uma análise mais ampla dos riscos e da vulnerabilidade de toda a bacia, e não apenas do bloco específico.

A argumentação era clara: em uma área de correntes extremas e alta sensibilidade socioambiental, era tecnicamente inviável garantir uma resposta adequada a um acidente. A negativa foi estritamente técnica, sem interferências políticas, baseada na ciência e no princípio da precaução.

 

 

Agosto de 2025: o despreparo da Petrobras no simulado de segurança

Quinze meses depois da negativa técnica, em agosto de 2025, a Petrobras realizou um simulado de emergência que deveria demonstrar sua capacidade de responder a um vazamento de óleo. O resultado foi devastador.

O plano de resgate de animais foi reprovado na Avaliação Pré-Operacional (APO), e o relatório técnico do Ibama foi contundente: o plano "não é capaz de garantir ações adequadas" e poderia resultar em "perda maciça de biodiversidade" em caso de vazamento real.

Imagens captadas do submarino dos Corais da Amazônia(Foto: Divulgação/Greenpeace)
Foto: Divulgação/Greenpeace Imagens captadas do submarino dos Corais da Amazônia

"A equipe de fauna do licenciamento concluiu que o plano não está apto a garantir ações adequadas de resgate de fauna e não deve ser aprovado nos termos apresentados", registraram os técnicos no parecer oficial. Mas os problemas não se limitaram à ineficácia do plano.

Durante a execução do simulado, a equipe da Petrobras cometeu uma série de violações graves às próprias regras de segurança estabelecidas. Para tentar cumprir o prazo crítico de 24 horas para iniciar o resgate de fauna oleada — tempo considerado essencial para minimizar mortalidade — a empresa usou embarcações não autorizadas pelo Ibama e realizou operações noturnas no Rio Oiapoque, contrariando frontalmente o próprio plano de segurança, que previa navegação apenas com luz natural.

As consequências dessas improvisações foram imediatas e reveladoras. A operação noturna causou três incidentes reais: um barco ficou preso em uma rede de pesca (o pescador teve que ser indenizado em R$ 12 mil), outro encalhou em um banco de areia, e houve uma quase colisão entre embarcações. E isso em um simulado, com bonecos de plástico simulando animais, em condições de navegação favoráveis e sem a presença real de óleo espalhado pelas águas turvas da foz.

Mesmo com todas essas violações de segurança e em condições ideais, o prazo de 24 horas foi cumprido por uma margem mínima: 23 horas e 24 minutos. A pergunta que ficou no ar, formulada pelos próprios técnicos do Ibama, resumiu o desastre: como seria em um acidente real, com óleo se espalhando rapidamente pelas correntes, tempo ruim, mar agitado, visibilidade zero e animais de verdade agonizando nas águas contaminadas?

Na praia de Itapuama, Pernambuco, menino limpa o corpo coberto de óleo, durante o vazamento de óleo cru nas praias nordestinas em 2019(Foto:  LEO MALAFAIA / AFP)
Foto: LEO MALAFAIA / AFP Na praia de Itapuama, Pernambuco, menino limpa o corpo coberto de óleo, durante o vazamento de óleo cru nas praias nordestinas em 2019

Diante das falhas demonstradas no simulado, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou formalmente que o Ibama não concedesse a licença até que a Petrobras realizasse um novo simulado para comprovar, de fato, sua capacidade de resposta. A recomendação tinha peso jurídico e técnico. Mas foi ignorada.

Menos de duas semanas depois da recomendação do MPF, o Ibama autorizou a perfuração. A exigência de uma nova simulação foi postergada: a Petrobras fará outro teste, mas já com a licença em mãos e a plataforma operando. O risco foi autorizado antes de ser adequadamente dimensionado e mitigado.

 

 

O outro lado: posições oficiais

Diante do coro de críticas, Ibama e Petrobras defenderam a licença como resultado de um processo rigoroso e técnico.

O Ibama destacou em nota oficial que a análise incluiu Estudo de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) completo, três audiências públicas e 65 reuniões técnicas em mais de 20 municípios do Pará e Amapá. O órgão afirmou ter realizado vistorias em todas as estruturas de resposta à emergência e uma Avaliação Pré-Operacional com mais de 400 participantes.

Segundo o instituto, após o indeferimento em maio de 2023, houve um "aprimoramento substancial do projeto", incluindo a construção de novo Centro de Reabilitação e Despetrolização no Amapá e a inclusão de embarcações dedicadas ao atendimento de fauna oleada.

A Petrobras conseguiu a licença do Ibama para a perfuração de um poço exploratório para prospecção de petróleo no bloco FZA-M-059 da Margem Equatorial, na Foz do Amazonas(Foto:  Petrobras/Divulgação)
Foto: Petrobras/Divulgação A Petrobras conseguiu a licença do Ibama para a perfuração de um poço exploratório para prospecção de petróleo no bloco FZA-M-059 da Margem Equatorial, na Foz do Amazonas

A Petrobras celebrou a autorização como "conquista da sociedade brasileira". Em comunicado, a estatal afirmou ter cumprido integralmente todos os requisitos estabelecidos pelo Ibama, reforçando seu "compromisso com o desenvolvimento da Margem Equatorial Brasileira" e enquadrando a exploração como necessária para garantir a segurança energética do país e financiar uma "transição energética justa".

Tanto Ibama, quanto Petrobras silenciaram, em seus comunicados oficiais, sobre pontos centrais das críticas: a reprovação do plano de fauna no simulado de agosto, a recomendação do MPF para não conceder a licença antes de novo teste, e a ausência de consulta prévia às comunidades indígenas e tradicionais exigida pela Convenção 169 da OIT.

 

 

Desmontando a defesa do petróleo

Os defensores da exploração petrolífera na Foz do Amazonas recorrem a um conjunto de argumentos que, sob escrutínio, revelam fragilidades e contradições com os próprios dados sobre a realidade energética brasileira. 

 

Esses argumentos técnicos e econômicos, porém, esbarram em profundas contradições políticas dentro do próprio governo brasileiro.

 

 

Contradições e disputas no governo brasileiro

Às vésperas de sediar a COP30 e projetar uma imagem de liderança climática global, o governo brasileiro se vê imerso em um profundo paradoxo interno, no qual o discurso de liderança climática se choca com a prática desenvolvimentista fóssil.

De um lado, o Brasil demonstra um avanço inegável na pauta ambiental. Sob a liderança da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), Marina Silva, o país alcançou uma redução de 32% no desmatamento em dois anos, tornando a meta de desmatamento zero até 2030 uma possibilidade real. Esta é uma sinalização poderosa para o mundo.

Do outro lado, o governo cede à pressão por combustíveis fósseis. O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, celebrou abertamente a licença na Foz do Amazonas, um projeto defendido pela bancada do Amapá e pela presidente da Petrobras, Magda Chambriard.

Esta agenda contradiz frontalmente as recomendações da Agência Internacional de Energia e do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), que afirmam que, para limitar o aquecimento a 1,5 °C, nenhum novo projeto de combustível fóssil pode ser licenciado.

A posição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva oscila entre os dois discursos, refletindo a disputa de poder dentro do governo. A fragilidade política da agenda climática é evidente: a promessa de campanha de criar uma Autoridade Climática ainda não saiu do papel.

A ministra Marina Silva, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a ministra dos povos indigenas, Sonia Guajajara, e a presidenta da Funai, Joenia Wapichana em cerimônia comemorativa do Dia da Amazônia(Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)
Foto: Joédson Alves/Agência Brasil A ministra Marina Silva, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a ministra dos povos indigenas, Sonia Guajajara, e a presidenta da Funai, Joenia Wapichana em cerimônia comemorativa do Dia da Amazônia

A articulação política da agenda ambiental está a cargo do ministro da Casa Civil, Rui Costa, cujo legado como governador da Bahia inclui um histórico de desmonte da legislação e da proteção ambiental. Segundo apuração da agência Sumaúma, a decisão final de emitir a licença antes da COP30 foi tomada na Casa Civil, comandada por Costa, um dos maiores defensores da intensificação da exploração petrolífera no ministério de Lula.

 

 

Os arquitetos da COP e a crise de credibilidade

Isso não significa o fim das negociações. É preciso distinguir quem negocia e quem age. A presidência da COP30 está em mãos ambientalmente competentes:

 

 

André Corrêa do Lago

André Corrêa do Lago

Como presidente da COP30, o Embaixador representa o melhor da diplomacia brasileira que o Itamaraty pode oferecer. Com vasta experiência em clima e energia, sua liderança é técnica e focada em construir consensos no cenário multilateral. Em suas cartas, ele evoca o "mutirão" para convocar uma ação coletiva global

 

Ana Toni

Ana Toni

A CEO da COP30, vinda de uma longa trajetória em organizações como o Instituto Clima e Sociedade (iCS), traz para a presidência uma visão de urgência e o conhecimento de quem sempre esteve na linha de frente da causa climática


No entanto, a credibilidade do Brasil como nação anfitriã está profundamente minada.

A autorização do Ibama confronta diretamente as recomendações da ciência climática global. Ao ignorar a orientação da Agência Internacional de Energia (AIE) de não licenciar nenhum novo projeto de combustível fóssil, o governo Lula sabota a própria COP30 que se propõe a sediar.

Carlos Nobre, um dos maiores climatologistas do país, alertou: "A Amazônia está muito próxima do ponto de não retorno, que será irreversivelmente atingido se o aquecimento global atingir 2°C e o desmatamento ultrapassar 20%. Não há nenhuma justificativa para qualquer nova exploração de petróleo".

Carlos Nobre, cientista brasileiro(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Carlos Nobre, cientista brasileiro

Paulo Artaxo, membro do IPCC, reforça: "O Brasil tem a oportunidade de explorar seu enorme potencial de geração energética solar e eólica e se tornar uma potência mundial em energias sustentáveis. Não devemos desperdiçar esta oportunidade. Abrir novas áreas de produção de petróleo vai auxiliar a agravar ainda mais as mudanças climáticas".

As emissões potenciais da exploração na Foz do Amazonas podem anular os ganhos climáticos obtidos com a redução do desmatamento na Amazônia. É trocar "seis por meia dúzia" em termos de emissões, comprometendo a narrativa de liderança climática que o Brasil tenta construir.

Uma pesquisa Datafolha realizada em setembro de 2025 revelou que 61% dos brasileiros são contra a exploração na Foz do Amazonas. Entre os jovens de 16 a 24 anos, a rejeição sobe para 73%. O governo ignora não apenas a ciência, mas também a vontade da população.

As vozes das organizações socioambientais e indígenas são unânimes em denunciar a contradição. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) declarou que Lula avança com um "projeto de caráter predatório" sobre "a voz, os direitos e as vidas dos povos indígenas, verdadeiros guardiões e defensores da floresta, cuja existência é fundamental para a manutenção da vida e do equilíbrio climático do planeta". A licença "escancara ao mundo as contradições do Brasil no que diz respeito à política ambiental e climática".

Ilan Zugman, da 350.org, sintetizou o problema: "Autorizar novas frentes de petróleo na Amazônia não é apenas um erro histórico, é insistir em um modelo que não deu certo. A história do petróleo no Brasil mostra isso com clareza: muito lucro para poucos, e desigualdade, destruição e violência para as populações locais".

 

 

Próximos passos e expectativas

A ação coletiva protocolada na 9ª Vara Federal Ambiental e Agrária de Belém representa mais do que uma disputa judicial: é um movimento de resistência política e social contra o avanço do modelo fóssil na Amazônia.

A escolha estratégica do Pará como sede da ação não é acidental — a causa tramitará na mesma cidade que sediará a COP30 em novembro, transformando o caso em um símbolo das contradições brasileiras no debate climático global. A Justiça Federal do Pará deverá analisar, nas próximas semanas, os pedidos de liminar para suspensão imediata das atividades de perfuração.

A repercussão nacional e internacional do caso é esperada e já começou. A articulação e pressão por parte da sociedade civil, que une movimentos ambientalistas, indígenas, quilombolas e de pescadores artesanais, deve se intensificar durante a COP30.

A Petrobras conseguiu a licença do Ibama para a perfuração de um poço exploratório para prospecção de petróleo no bloco FZA-M-059 da Margem Equatorial, na Foz do Amazonas. Na foto, a Margem Equatorial via satélite(Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock A Petrobras conseguiu a licença do Ibama para a perfuração de um poço exploratório para prospecção de petróleo no bloco FZA-M-059 da Margem Equatorial, na Foz do Amazonas. Na foto, a Margem Equatorial via satélite

O timing da disputa judicial aumenta a visibilidade do caso e coloca o Brasil sob os holofotes internacionais justamente no momento em que tenta se posicionar como líder na agenda climática. A decisão judicial, quando vier, poderá marcar um precedente histórico importante para as políticas ambientais e os direitos territoriais no Brasil.

Se a Justiça acolher os argumentos das organizações e anular a licença, será a primeira vez que a aplicação do parecer da Corte Internacional de Justiça sobre obrigações climáticas dos países influencia uma decisão concreta sobre exploração de combustíveis fósseis no território brasileiro.

O caso da Foz do Amazonas pode definir, de uma vez por todas, se o Brasil escolhe ser vanguarda ou retaguarda na história da transição energética global.

 

 

Ponto de vista

Vanguarda ou retaguarda na história?

por Gabriel Siqueira*

O som da pororoca continua ecoando na Foz do Amazonas — o encontro violento entre águas doces e salgadas que há milênios define aquele território. Mas agora, ao barulho natural da vida se sobrepõe o ruído metálico de uma perfuratriz autorizada pelo próprio governo que prometia proteger a Amazônia. Como sintetizou Mariana Andrade, do Greenpeace: "Às vésperas da COP30, o Brasil se veste de verde no palco internacional, mas se mancha de óleo na própria casa."

Gabriel Siqueira é jornalista com mais de 20 anos de experiência em organizações socioambientais(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Gabriel Siqueira é jornalista com mais de 20 anos de experiência em organizações socioambientais

A liderança climática brasileira não foi apenas comprometida — foi enterrada no fundo do oceano, a 2.880 metros de profundidade, junto com a credibilidade de um governo que escolheu o lucro imediato sobre o futuro da Amazônia e do planeta. A COP30, em novembro de 2025, será o momento da verdade.

O Brasil pode escolher liderar uma nova economia amazônica, baseada em bioeconomia e energias renováveis, ou repetir os erros coloniais do passado, insistindo em um modelo extrativista que enriquece poucos e destrói para todos.

Ainda há tempo para o Brasil alinhar sua política interna à sua ambição externa. A verdadeira liderança geopolítica, especialmente ao sediar a COP30, é mostrar ao mundo um novo caminho, uma nova economia para a Amazônia — não entrar numa corrida predatória para o fundo do poço.

Como afirma Paulo Artaxo, cientista membro do IPCC: "O Brasil tem a oportunidade de explorar seu enorme potencial de geração energética solar e eólica e se tornar uma potência mundial em energias sustentáveis. Não devemos desperdiçar esta oportunidade".

A pressão da sociedade civil, a mobilização dos povos indígenas, quilombolas e de pescadores artesanais, e a batalha judicial que se desenrola nos tribunais são fundamentais para a defesa das condições de vida humana no planeta.

A questão que ficará para a história é se o governo brasileiro ouvirá a ciência e as vozes da floresta, ou se curvará definitivamente ao lobby de um setor em declínio. Entre a vanguarda e a retaguarda, entre a pororoca da vida e o silêncio do óleo derramado, o Brasil precisa escolher. E escolher rápido.

*Gabriel Siqueira é jornalista, analista de dados e doutorando em Administração pela UFSC. Com mais de 20 anos de experiência em organizações socioambientais, combina jornalismo investigativo e narrativas baseadas em dados para dar visibilidade a temas de justiça climática e sustentabilidade. Atualmente, colabora com a Global Citizen, cobrindo comunidades tradicionais da Amazônia, e atua como Analista de Dados no projeto "Na Mesa da COP30" pelo Instituto Regenera. Foi também Diretor de Comunicações da Global Ecovillage Network (GEN), onde liderou a cobertura de múltiplas Conferências Climáticas da ONU.

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